SALVA ALMAS

Escultura, Macieira

José Almeida, também conhecido por “salva almas”, nasceu na aldeia de Macieira, distrito de Viseu, em 1930. Depois de um curto período em que esteve emigrado em França, para fugir à miséria que então se vivia, voltou a Portugal e começou a construir a sua casa onde, alguns anos depois, montou também um restaurante. Declara ter um fascínio pela pedra, que escavaca desde criança. As esculturas que realizou, porém, contam-se pelos dedos das mãos, e parecem ter nascido de um ímpeto criador iniciado pouco depois do 25 de abril, talvez impulsionado pela atmosfera generalizada de liberdade. Mas será limitador reduzir a sua obra (porque é de uma obra que se trata) à produção escultórica; os objetos utilitários (rocas, cinzeiros, etc.) e a decoração da sua casa e restaurante devem também ser integrados na sua criação artística, evocando o conceito de obra de arte total. Mais uma vez, a produção de artistas "outsiders" permite-nos questionar a convencional divisão entre belas-artes e artes decorativas. José Almeida é um homem curioso: duvida da existência de Deus e poucas vezes entrou em igrejas, mas a sua criação está carregada de referências cristãs. Dentro destas, é o São Macário o grande destacado, sendo representado em diferentes episódios da lenda deste santo que se conta ter habitado a região. Diz-nos que São Macário tem sido um bom vizinho.

 

Num dia quente de Agosto de 2023, enchemos um carro que saiu do Porto com destino à aldeia da Macieira. Conversámos com o Sr. Salva almas e aproveitámos para experimentar as delícias servidas no seu restaurante.

Entrevista de Maria Manuela Restivo. Fotografias de Daniel Moreira e Rita Castro Neves (imagem 1), Vera Carmo (imagem 3), Maria Manuela Restivo (imagens 12, 13 e14) e Guilherme Monteiro (restantes).

Muito obrigada por nos receber! Nasceu aqui na Macieira?

Sim.

Os seus pais o que faziam?

Cavavam a terra, plantavam batatas, semeavam o linho e o centeio. A minha mãe era tecedeira. As mulheres faziam o linho e punham lá dentro uns pedaços de pão e um bocado de açúcar, e nós andávamos o dia todo a roer o farrapo. Era a nossa chupeta. 

Chegou a viver noutros lados?

A miséria assim me obrigou. Fui para a França de salto. Andei por lá dois anitos e meio.

Teve problemas com o regime?

Fome, muita fome. E uma pessoa não tinha liberdade de fazer nada. Para namorar uma rapariga era preciso namorar às escondidas… olhe, não sei. 

O que fazia em França?

Fui sempre pedreiro.

Gostava de estar lá?

Nunca gostei de estar em país nenhum estranho. Depois fui para a Alemanha e também não gostei. A minha raiz foi sempre aqui, no meu Portugal. Aqui vivemos bem se quisermos. E podemos ser sérios e honestos uns para os outros se quisermos. Aqui cada um segue o caminho que quiser.

Quanto tempo esteve na Alemanha? 

Três semanas! [risos] Depois vim para Portugal. Mas aprendi mais na Alemanha do que nos outros lados. 

Foi nessa altura que comprou esta casa?

Não comprei, fiz! Já tinha aqui terra para cavar. Esta casa foi nascendo de baixo para cima. Está toda decorada e é tudo feito por mim. A minha mulher ajudou-me a construir isto, faleceu há uns oito anos. 

Como conheceu a sua mulher?

Ela nasceu aqui atrás numa caixa, coitada. Foi criada lá em baixo em nossa casa. Eram muitos irmãos, aquilo era só fome, só fome… eu comecei a gostar dela desde pequenino, e olhe, casei com ela. Ela era mais nova do que eu onze anos e morreu primeiro que eu. Anda para lá não sei aonde…

É para onde vamos todos. Foi o amor da sua vida?

Foi, foi ela. E continua a ser ela.

Tiveram filhos?

Dois. A filha foi ela que a fez, o filho fui eu. [risos]

Não se importa de viver sozinho?

Mais vale sozinho do que mal acompanhado! Eu sei que ela não volta. Faço o meu comer, semeio a minha batata, a minha cebola… vou à horta todos os dias, encho as unhas de terra, depois lavo-as e a terra sai. Vou vivendo como as outras pessoas. Com mais sacrifício ou menos sacrifício. Não há ninguém que não tenha sacrifício. Cada um diz daquilo que sofre.

Aqui em cima o que tem?

Lá em cima tenho tralha antiga, sapatos velhos, pentes, rocas, linho antigo, tudo antigo. Ia rompendo e punha aqui.

 

E o restaurante, também começou logo?

Foi assim: a minha mulher começou a fazer pão e andava a vender com uma canastra à cabeça. Já dava para dar de comer a nós e aos filhos, já não era preciso cavar a terra. Depois começamos a fazer, a fazer, até que abrimos o restaurante.

Quando começou a fazer as suas peças?

Eu logo de pequenino comecei a brincar com as pedras. Depois quando cheguei é que comecei a fazer coisas. A primeira pedra que fiz, vou-vos mostrar. Santos não são… Veio o 25 de abril que trouxe muita liberdade, e eu comecei a escavacar pedra. Encontrei aquela pedra no meio do monte, e comecei a escavá-la, escavá-la, e deu isto. Depois estava com medo que a roubassem e fiz a parte de baixo. E só depois comecei a fazer aquela grutazita. 

O que representa esta imagem?

Não é um menino nem uma menina, para mim é liberdade. 

E aqui dentro?

Este é o São Macário, feito mesmo com pedra da serra de São Macário. Aquela foi no pós 25 de abril. Disseram que de uma ovelha dava para fazer um ser humano. Então eu ouvi aquilo na rádio e na televisão e fiz aquela imagem com cornos de carneiro. Assim quando nasciam, já tinham cornos. É tudo críticas. Este de baixo fiz porque as pessoas da minha terra faziam pouco de mim quando vim para aqui. Então fiz esta imagem com a língua de fora para arremedar. Ainda hoje sou invejado. 

Porquê?!

Olhe, gente como vocês, e outros, vêm falar comigo, e não falam com outras pessoas da minha terra. Estas pedras vêm todas da serra, transportadas praticamente às costas. Trabalhei aqui muito e tenho gosto no que fiz. 

Passeava muito na serra?

E ia buscar as pedras. Para mim as pedras são a maior riqueza do mundo, é uma fortuna. Dá para agasalho, para fazer o lume, para cozer o pão, para atirar à janela do outro… [risos]

E este espaço?

Aqui é a tal capelita que eu montei. Isto é o busto da minha mulher. Fiz esta flor para pôr debaixo dela. Isto é o prato e isto é o garfo, ela era cozinheira. Este altar já aqui está cortado ao meio. Aqui por baixo tem uma pia. Há uma coisa que quero fazer, quando puder: é desenterrá-la do cemitério, queimá-la, e enterrar as cinzas aqui. E eu quando morrer quero ser queimado e que coloquem as minhas cinzas do lado dela. Quero que ela fique do lado direito e eu do lado esquerdo. Tudo aqui também fui eu que fiz. 

Este espaço agora serve para quê?

Serve para rezar a missa. Está benzido, esteve cá o padre Elias de Viseu. Isto é património meu mas é da Igreja também. Os escuteiros vêm cá de vez em quando, e outra gente que acredita mais nessas coisas.

 

Vamos ver lá em cima o resto. Estas esculturas fez quando?

Foi tudo seguido, foi há mais de quarenta anos. Isto é tudo imagens de São Macário, da vida dele. Aqui são as três pessoas da Santíssima Trindade. Aqui é o São Macário que vinha à Macieira com o fogo na mão. 

Porque gosta tanto do São Macário?

É um bom vizinho que tenho. Dá-se bem comigo, ajuda-me a trazer pessoal cá, ajuda-me a falar com pessoas, ajuda-me a ter experiência na vida. O São Macário para mim é um superior. Tem-me ajudado muito. Será por engano? [risos]

 

“Foi tudo por Deus”. Porque escreveu aquilo?

É uma lembração. Antigamente as pessoas diziam sempre “é tudo por Deus, é tudo por Deus”. Então olhe, decidi escrever isso.

Acredita em Deus?

Acredito na terra, acredito no homem que é verdadeiro, na água e no sol. Embora que se houvesse Deus, há tantos anos que Jesus está pregado na cruz que já tinha arrancado os pregos. Mas não sou contra as palavras que cada um quer evocar. Isto são as panelas de ferro, a cafeteira... isto não é pintado, é tudo pedra! 

 

 

E as outras imagens?

Deram-me, é tudo dado. E agora vamos ver a sacristia. Aqui temos… uma casa de convívio. Tenho aqui as garrafas. Aqui é a tal mesa redonda… quando o padre vinha cá mudar de roupa com as senhoras freiras…

[risos] Porque decidiu fazer isso?

Eu ouvia falar de tantos falos feitos em barro, porque é que não se faz um de pau? E é mais difícil fazer uma mulher do que um homem.

De todas as peças que fez, qual é a que gosta mais?

Todas! Atrevi-me a trabalhar naquilo, fiz aquilo que gostava e que podia. Até a roca para mim tem muito valor!

Faz-lhe lembrar a sua mãe?

Muito! A minha mãe. Era uma santa. O meu avô roubou a minha avó aos meus pais. O meu pai roubou a mulher aos pais dela, eles não queriam que ela casasse com ela. Eu casei contra a vontade dos meus pais, mas vivemos todos bem. 

Gosta das coisas que escrevem sobre si?

Eu dou muito valor a mim próprio. Não dou muito valor ao que os outros dizem.

O que ainda gostaria de fazer?

Gostava de acabar aquilo que não posso. 

Como por exemplo…?

Uma capela que estou a fazer lá em cima da montanha. É um abrigo, uma capela é um abrigo. 

Naquela árvore o que está a fazer?

Quero fazer um presépio, mas estou a trabalhar sozinho e não tenho ajuda de nenhum filho. Não quero lá pôr nada, quero fazer um presépio, mas com nada. Cada um leva a sua fé e o seu pensamento. Quero que as pessoas vão lá e façam as brincadeiras que quiserem. Está de portas abertas. 

 

Então não vai pôr figuras?

Vou pôr as figuras que interessam. Cada um vai fazer a figura que quer. Aquilo é uma árvore viva ao pé de uma morta.

Falta-nos fazer uma última pergunta. Porque lhe chamam o salva almas?

Eu vinha lá de baixo para cima e todos faziam pouco de mim, diziam que eu apanhava almas. Então eu torci aquilo, dizia "o salva almas". Qual é o melhor, apanha ou salva?

Salva, sem dúvida! [risos]