ANA PIRES

Especialista em têxteis portugueses

Há mais de quarenta anos que Ana Pires trabalha na área das artes e ofícios tradicionais portugueses, estando por isso particularmente bem posicionada para refletir sobre as modificações que têm ocorrido nesta área. Foi diretora da Revista Mãos – a única revista portuguesa dedicada a estas matérias – coordenadora do Catálogo "Artesanato da Região Centro" e atualmente dedica-se ao Museu Etnográfico da Pampilhosa. A sua análise sobre o panorama do artesanato em Portugal é crítica e incisiva, sobretudo no que se refere às iniciativas levadas a cabo nas décadas de 1980 e 1990. Interessada particularmente nos têxteis portugueses, tornou-se especialista reconhecida naquilo que podemos designar como os têxteis tradicionais, ainda que estas designações, sabemos já, sejam tão pertinentes quanto problemáticas. Recebeu-nos no Museu Etnográfico da Pampilhosa e, de seguida, em sua casa, onde nos mostrou alguns exemplares dos bordados que tem vindo a investigar.

Esta entrevista é um resumo de duas longas conversas com Ana Pires: uma em junho de 2020 e a outra em outubro do mesmo ano.

Como se desenvolve a sua relação com o artesanato?

Eu sou geógrafa de formação. Portanto, por feitio, tudo aquilo que diz respeito ao território, tudo aquilo que funciona como um revelador do território me interessa. Em 1979, fez-se um grande colóquio, organizado pelo Departamento de Antropologia de Coimbra, com o apoio da Câmara, e nessa altura eu fui uma das participantes, a representar o meu serviço, que era a Comissão de Coordenação [da Região Centro]. Na altura, ninguém sabia nada! Nem o que eram as atividades artesanais, nem o seu significado... nada! Eventualmente, uma ou outra pessoa conhecia um grupo de oficinas aqui, outras acolá, mas coisas muito pontuais. Houve este colóquio de artesanato e, na altura, todos os serviços de alguma forma se sentiam relacionados com o tema: ou por causa do emprego, ou por causa da cultura, ou da cultura tradicional ou em termos do marketing, chamemos-lhe assim, das regiões, embora na altura ninguém dissesse dessa maneira. Mas tudo isto de uma maneira muito vaga, muito pouco refletida. Nessa altura, começou também a Feira Nacional de Artesanato de Vila do Conde. Não por acaso, foi também no final dos anos 1970 que surgiram as primeiras associações de defesa do património. E, portanto, o movimento de olhar para aquilo que é nosso, seja a partir das questões do artesanato, seja a partir das questões do património, tudo isso teve muita força no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.

Como é que caracteriza essas primeiras iniciativas?

Trabalho propriamente dito, não havia. Como digo, houve esse encontro sobre artesanato. E depois, pontualmente, ao sabor das sensibilidades locais, algumas Câmaras começaram a promover exposições e os seus produtos artesanais. Mas de uma maneira muito... nem posso dizer empírica, muito casuística. Verdadeiramente, só se começou a trabalhar a sério no artesanato com as ajudas de pré-adesão. Quando em Portugal se perspetiva a adesão à Comunidade Europeia, começa a haver algum dinheiro e é nessa altura que algumas coisas se começam a desenvolver. É assim precisamente que surge o CEARTE, o Centro de Formação Profissional para o Artesanato e Património, que funciona em Coimbra – porque se percebe que o artesanato pode dar emprego e pode ser uma fonte de rendimento. E, mais uma vez, começa-se a intervir de uma maneira muito espontânea, pouco refletida. Logo quando Portugal adere, começa a ter acesso ao Fundo Social Europeu, que pagou milhares e milhares de horas de formação profissional no domínio das atividades artesanais. É claro que as coisas nem sempre correram bem. E não correram bem por várias razões. O Fundo Social Europeu tem as suas regras. E, por exemplo, uma das regras era de que não poderia haver formação com menos de dez formandos. Havia, imaginem, uma atividade no Caramulo que as pessoas achavam muito importante, como por exemplo, fazer capuchas de Burel. É claro que havia um senhor ou uma senhora que fazia capuchas de Burel, e depois, para haver uma ação de formação, tinha que se arranjar dez pessoas. E elas iam, todas contentes, porque ganhavam. A formação passou de um paradigma em que o formando pagava ao mestre, para uma situação em que uma entidade externa paga ao formador e aos formandos todos, percebem? Isto injetou muito dinheiro e criou artificialmente muito emprego, isto com muitas aspas. Houve coisas que funcionaram assim anos e anos e anos... Havia pessoas que aprendiam as capuchas, depois passavam para as socas de madeira, depois passavam para a latoaria, enfim, cirandavam ali por uma série de possibilidades, que era no fundo a possibilidade de, durante dois, seis ou sete meses, tirarem uma espécie de ordenado. Isto criou problemas porque, por um lado, os mestres ficavam seduzidos por esse ganho certo e pelo seu reconhecimento – o prestígio que tinham como pessoas, de serem mestres naquela atividade – mas, por outro, estavam também a criar concorrentes. Por isso, houve mestres que não ensinavam assim tão bem quanto isso, porque não se podiam dar ao luxo de terem quem fosse tão bom como eles. Houve muita tecedeira que nunca aprendeu a urdir a teia.

Mas essas pessoas, ou pelo menos uma parte delas, seguiram mesmo essas áreas de formação?

Não... Eu julgo que não há nenhum estudo sobre isso... Mas imagino que nem 5% dos formandos ficaram a trabalhar na área. Porque a questão é esta: é importante aprender a fazer, mas um artesão é um vendedor. Produz e vende. Criar o mercado e chegar ao mercado é tão importante como dominar uma arte, seja ela qual for. E isso é difícil. É evidente que nós passámos de um sistema verdadeiramente tradicional, em que o conhecimento era transmitido familiarmente – ou, pelo menos, num sistema de vizinhança, em que era o vizinho, o padrinho, ou o tio, a quem se pedia para ensinar um ofício ao filho ou à filha – para se passar para um outro em que esta transmissão de saber deixa de ser deste modo e passa a ser paga e a atingir números de formandos que não tem nada a ver com a situação anterior. Isto numa altura em que, de alguma maneira, o mercado também começa a retrair. As pessoas, se estão a sair da agricultura, compram menos cestos. Preferem comprar uma coberta de nylon ou uma colcha do que ir à tecedeira. O plástico substitui os potes. Começa a haver água canalizada, não é preciso cântaros nem bilhas. Há aqui uma conjugação em que mudam as circunstâncias da vivência quotidiana das populações, quer no campo, quer na cidade, ao mesmo tempo que o sector das atividades artesanais fica cheio de gente – que, evidentemente, não sabe criar mercados e faz coisas muitas vezes desadequadas ao que as pessoas estão a exigir. Um cesteiro ensina jovens a fazer cestos, mas estes jovens não sabem qual é o mercado do seu mestre. E, mesmo que saibam, não o sabem de uma maneira objetiva que lhes permita tirar ilações para a criação do seu próprio mercado. O cesteiro faz, imaginem, uma série de cabazes ou cestos que têm a ver com a cultura da batata ou da vinha e, então, os jovens fazem cabazes e cestas para a batata e para a vinha, sem se aperceberem que as vinhas têm cada vez menos gente e usam cada vez menos objetos artesanais. Não têm rasgo para perceber que nessa altura há muita gente a construir vivendas nas zonas suburbanas que precisa é de cestos para a lenha. Quer dizer, eles dominam a arte, mas não sabem definir os objetos que são interessantes para determinada altura.

Voltando, então, ao início da atenção pelo artesanato em Portugal...

Nesta altura, preocupado com o mercado e em dar a conhecer este universo, o Instituto do Emprego, que é quem tem a responsabilidade pelo emprego e pela formação profissional, resolve lançar o projeto dos Catálogos de Artesanato. Fez-se primeiro o do norte e depois o do centro. No do centro, fomos eu, o Fernando Gaspar, que era o diretor do CEARTE, e o Eduardo Gonçalves, que trabalhava no Instituto do Emprego. Nós fizemos o Catálogo de Artesanato de uma maneira extremamente conscienciosa. É dos trabalhos na minha vida em que eu tenho mais orgulho. Comecei a trabalhar nisso em 1990-1992, e, entretanto, já havia uma experiência de cinco, seis anos de apoios ao artesanato. No Catálogo de Artesanato da Região Centro, nós identificámos uma série de grupos, ou domínios de atividade, e fomos à procura das coisas. Com a sorte, entre aspas – porque deu muito trabalho – de eu e o Fernando Gaspar sermos ambos geógrafos. Nós já tínhamos uma leitura do território que nos facilitava a pesquisa, nós sabíamos o que devíamos de procurar. Além de que eu, desde 1979, ia estando mais ou menos atenta ao que se ia fazendo neste domínio – a acompanhar as feiras e as exposições e essas coisas todas – ou seja, eu sabia muito bem o que procurar. Então, fizemos esse Catálogo, que é o único que tem uma estimativa do número de oficinas ou de pessoas que trabalhavam em cada domínio. Nós fizemos um intensivo trabalho de campo. O CEARTE, entretanto, ia fazendo o seu trabalho, fazendo as suas formações. E o Fundo Social Europeu começou a dar dinheiro para uns cursinhos sobre gestão, já não era só para aprender a atividade, e houve situações que correram bem. Não são muitas, mas houve situações que correram muito bem. Como por exemplo, o caso para mim mais espantoso, o das Capuchinhas de Montemuro, que é uma oficina numa aldeia pequeníssima do Montemuro, Campo Benfeito, onde um grupo de raparigas e as suas mães avançaram para a formação na área da tecelagem e da costura. Foi para lá uma estilista, a Helena Cardoso, que começou a trabalhar com aquelas mulheres e a reinventar o tradicional. Ela fazia coisas apelando à afetividade pelo tradicional, por aquilo que é considerado um património imaterial que está ao dispor das populações – que se traduz em motivos, cores, padrões, texturas. Ela pegou nisso e fez moda, uma moda intemporal. Percebe-se que é artesanal, que é único, mas com um ar urbano. As Capuchinhas, a certa altura, desligaram-se da Helena, mas pensaram: "O nosso trabalho é fazer, não somos nós que vamos inventar moda." Então, elas pagam a uma estilista que todos os anos lhes desenha uma série de modelos. Esta oficina tem uma relação muito clara com o seu designer, que não se apropria do trabalho delas. Para mim, este é o caso mais exemplar que eu conheço. Todos estes processos exigem lideranças, pessoas que saibam o que querem ou, pelo menos, pessoas persistentes, pessoas trabalhadoras. Estes projetos não se afirmam num ano, nem em dois, nem em cinco. É preciso que se perceba que, quando falamos numa iniciativa como as Capuchinhas de Montemuro, é importante ver o que isso significa em termos de persistência. É preciso gente que tenha os pés bem assentes a um palmo do chão. Quem está mesmo assente no chão não faz nada, porque as dificuldades são imensas… A pessoa tem que ter este espaço do sonho, um espaço que permita ter este arrojo e persistência. E isto é difícil. Sonho, arrojo e persistência é difícil.

Depois do Catálogo, como foi o seu percurso?

Para fazer o Catálogo nós precisávamos de textos. E apercebi-me que havia uma falta enorme de reflexão sobre estas matérias. Então, eu própria fui fazer textos para esse Catálogo. Devo dizer que não gostava nada do trabalho a que me obrigavam na Comissão de Coordenação e queria inventar um trabalho que me desse prazer! [risos] Então, propus ao meu chefe o seguinte: "Eu acho que nós temos produções que são a imagem das regiões e servem para promovê-las, mas são produtos que estão ameaçados na sua qualidade. Deixas-me ir à Madeira? Considero importante estudar a questão da certificação". E ele deixou. Fui recebida lá pelo Instituto do Bordado, percebi como funcionava o sistema de certificação e voltei. Poucos anos depois, surge uma estrutura que é o PPART, o Programa para a Promoção dos Ofícios e das Microempresas Artesanais, dirigida pelo Fernando Gaspar. Logo passado um ano, a Comissão de Coordenação da Região Norte chama-me a mim e ao Fernando Gaspar para uma reunião para dizer o seguinte: "Nós estamos a fazer a regulamentação do próximo Quadro Comunitário de Apoio e queríamos que nos ajudassem a definir uma linha de apoio ao artesanato". Eles estavam fartos de assistir às inaugurações dos centros de apoio ao artesanato que depois não apoiavam coisa nenhuma. Eram umas montras que rapidamente ficavam com umas teias de aranha, se não verdadeiras, metafóricas certamente. Portanto, eles queriam a nossa opinião. Eu na altura disse: "O que nós precisávamos agora para promover verdadeiramente estas coisas era de História. Eu acho que, quanto mais se souber de determinada produção e soubermos transmitir esse discurso, mais isso pode seduzir um comprador informado, culto e exigente, que é o que nós queremos. Portanto, o que nós precisamos é de estudos." "Ah, pois é, mas o FEDER não financia estudos, só financia estudos para processos de certificação." E eu disse: "Então vamos certificar o artesanato!" E, passado pouco tempo, comecei por fazer alguns cadernos de especificações. Fiz os cadernos do bordado de Viana do Castelo, do bordado Terra de Sousa, das rendas de Vila do Conde. E participei indiretamente no bordado de Tibaldinho e no de Castelo Branco.

Os artesãos consultam os cadernos de especificações? Passam a trabalhar a partir daí?

Sim. Em Castelo Branco elas estão doidas que eu lhes faça um novo caderno. O caderno de especificações que existe está bastante incompleto, não está muito bom. É importante que uma pessoa perceba que tipo de aves pode desenhar, não é? Nós temos que ir às colchas mais antigas e ir buscar as aves que lá estão, e arranjar assim o desenho de quinze, vinte aves. E, do mesmo modo, com as flores, há flores mais exóticas, diferentes tipos de cravos... tudo isso para a pessoa ter uma ideia daquele vocabulário. Esse levantamento não foi feito em Castelo Branco, devia ter sido.

Voltando ainda ao Catálogo de Artesanato da Região Centro, o critério principal tinha a ver com o que sobressaía em cada domínio, certo?

Sim. Nós sabíamos que não podíamos ter um Catálogo com toda a gente. Era impossível, era impraticável. Dentro de cada domínio, tínhamos que escolher aqueles consensualmente reconhecidos como os melhores. E a produção desses espelhava – e isso era dito – a produção de todo aquele núcleo de produtores, está a ver? Enfim, foi um projeto muito giro… e atirou-me em definitivo para esta área. Depois, com a questão dos cadernos de certificações, do Catálogo e da revista [Mãos], eu comecei a ter que pedalar. Sou incapaz de escrever sem estar segura daquilo que estou a dizer, portanto comecei a investigar. Eu não sou universitária, sou uma funcionária pública… com peneiras! Com peneiras, não. Com livros, com muitos livros! [risos]

Ouvi-a já a utilizar a palavra "etnográfico" como algo que me pareceu pejorativo. Como é que define a palavra "etnográfico" aplicada ao artesanato? 

Deixem-me contar uma coisa: um dos meus trabalhos é um levantamento sobre a tecelagem de Almalaguês. Almalaguês é um sítio absolutamente extraordinário, que pouca gente conhece, e ainda há vinte anos tinha lá cento e muitas tecedeiras. Quando eu falo numa perspetiva etnográfica, refiro-me àquelas pessoas que chegam a um local destes, fotografam o tear, põem o nome das peças todas do tear, fazem estatística com a idade média das tecedeiras, a escolaridade das tecedeiras… E depois, sobre a produção, não dizem quase nada. Essas pessoas descrevem o tear todo, mas nunca dizem uma coisa fundamental: aquilo tem uma falta de ergonomia total, dá cabo das pernas e dos joelhos daquelas mulheres. Nunca ninguém faz a crítica do tear. Eu não sei o nome das peças do tear, mas sei isto, que é muito importante, porque estou preocupada com as mulheres que produzem, com aquilo que produzem, como o podem vender e a quem. Almalaguês, com esta força toda e uma gramática decorativa absolutamente espantosa… Para mim, eu vejo uma atividade que é capaz de gerar emprego e recursos financeiros para as famílias, mas também produz outra coisa muito importante, que é o seu potencial de capital simbólico.

Acha que a sua perspetiva pode ser considerada, em parte pelo menos, um pouco economicista, no sentido do desenvolvimento económico da atividade, ou acha que é exagerado?

Eu não tenho problemas nenhuns que seja considerada assim. Porque a questão é a seguinte: nós temos estas atividades enquanto elas responderem a apelos, enquanto tiverem uma função, enquanto se lhes reconhecer utilidade. Essa utilidade pode ser vista de uma maneira muito estrita: uma faca produzida numa oficina artesanal tem que cortar e as pessoas compram a faca porque ela corta. Ou pode ser útil pela imagem, por qualquer coisa que nos encanta, uma bilha com uma forma bonita, por exemplo. Aquela bilha já não é para ter água, é para ter um ramo de flores secas ou simplesmente para estar a segurar uns livros. Sem a perspetiva economicista, não temos atividades. As atividades não vivem do ar, as pessoas não vivem do ar. Para termos atividades temos que ter pessoas. E as pessoas têm que ser ressarcidas pelo seu esforço, pelas suas competências, por aquilo que fazem. Portanto, isto é importante. Mas também é preciso dizer: isto é importante porque elas fazem coisas especiais. É a afetividade que nós temos por determinadas imagens que eu chamo o capital simbólico, imagens que nos traduzem uma região ou que nos traduzem ambientes. Enfim, eu acho que não sou assim propriamente uma economicista pura e dura, sou assim uma coisa mais temperada. [risos]

Na sua intervenção em Guimarães [no evento Em Concreto, 2019], disse que odiava a palavra "artesanato". Queria que falasse um pouco sobre essa aversão à palavra.

Eu não gosto da palavra "artesanato" porque ela mistifica uma realidade múltipla. É dar o mesmo nome a coisas muito diferentes. Repare, a palavra "artesanato" entrou muito recentemente na língua portuguesa. Um "artesão", sabe o que era? É um lavor de um teto de estuque ou de madeira, ou de outra coisa qualquer. Aquilo a que nós chamamos agora "artesãos" não eram chamados "artesãos", eram o funileiro, o esparteiro, a tecedeira, o oleiro, o caldeireiro, o ferreiro, o cesteiro, a bordadeira. Havia ofícios, ofícios regulados. Isto perdeu-se, na passagem do antigo regime para o novo, a seguir à Revolução Liberal. Quando se começa a falar de artesanato para falar de todas as produções que não acompanharam a tecnologia ligada à revolução industrial, isto entrou tudo assim numa caldeirada indistinta, desqualificada, despromovida, em que realmente se chega ao ponto extremo de se achar que quanto mais tosco, melhor, quanto mais mal feito, melhor. E é por isso que eu detesto a palavra "artesanato", falo sempre nos ofícios, falo sempre nas pessoas. Ou seja, estamos sempre a falar de objetos essencialmente funcionais. Eles têm sempre que cumprir uma função, se não ... ninguém compra inutilidades. Seja essa função mais simbólica, mais estética ou mais prática, mas existe sempre uma função. E não obsta a que não possa ter todas as funções na mesma peça.

E o conceito de "arte popular"?

É uma coisa que... eu não me meto nisso. Devo dizer que é muito raro escrever assim por extenso "arte popular"... prefiro dizer "arte tradicional", não sei porquê. Acho que me tranquiliza mais. [risos] O popular é sempre... é sempre um equívoco.

Acha que ficou muito conotado com o Estado Novo, ou não é por aí...?

Talvez... os aproveitamentos. Eu comecei a ler muito a crítica à política do Estado Novo. Comecei com o Jorge Ramos do Ó e "O Estranho Caso do Nacionalismo Português" [de Luís Trindade]. Tenho lido estes e outros autores, porque, às tantas, tive que pôr a questão a mim mesma: "O Ferro também fazia isto e eu ando aqui feita parva a fazer a mesma coisa?!" Assim, reciclada no pós 25 de abril? Fiquei preocupada, devo dizer! [risos]

Como se deu a sua relação com este museu? Como se constituiu?

Começa por ser uma associação cultural, que nasce de um rancho folclórico, aliás, etnográfico, não vamos confundir as coisas. O etnográfico tem preocupações de rigor que o folclórico tem menos. Mas, de facto, este grupo nasce com preocupações de autenticidade – perceber como eram as saias, as blusas, os tecidos, os padrões, os coletes dos homens, como é que era isto e aquilo. E as pessoas daqui começaram a dizer: "Ah! Vocês gostam de coisas antigas! Um dia que façam um museu, tenho ali não sei quê que até vos dou." E pronto. O grupo logo de início organizou-se para comprar este espaço, que estava na mão de privados. Eles foram extraordinários, fizeram um preço baixíssimo, porque perceberam o interesse do projeto. O grupo começou a recuperação do edifício e passou a haver sítio para o museu. Há quase 40 anos que se estão a juntar peças. Foi uma tia minha que esteve muito ligada ao desenvolvimento do museu… e depois eu acabei por continuar o trabalho dela. E este grupo também tem uma revista, já vão editar o seu número 38! Eu sempre estive ligada ao grupo, publiquei artigos, etc., mas a trabalhar assim seriamente foi de há dez ou doze anos para cá. Para as pessoas visitarem o museu, só têm de contactar a Junta de Freguesia.

Depois da visita ao Museu, Ana Pires levou-nos a sua casa para nos mostrar os bordados que tem investigado nos últimos anos e dos quais possui alguns exemplares, chamando a atenção para a relação entre a gramática decorativa dos têxteis e o seu contexto histórico e cultural. Acompanhados de sua irmã, que partilha com Ana Pires a boa disposição e a arte de bem receber, viajámos pelo universo dos bordados portugueses.

BORDADO DE VIANA DO CASTELO

Eu gosto muito desta peça, ela é muito antiga na produção de Viana, deve ser de final dos anos 1920. Os motivos ainda são complexos em certa medida, agora estão muito mais simplificados.

Este ponto é português, não há em mais lado nenhum, chama-se trinca-fio. É, aliás, um ponto minhoto, do Alto Minho. É uma coisa muito esperta. Fazem a bainha para o lado direito e depois decoram-na. Portanto, aquilo que era o trabalho de fazer uma bainha, elas de uma maneira muito despachada, transformam-na num motivo de decoração com este ponto, que tem um avesso muito característico. Para uma pessoa identificar um ponto, tem sempre que ver do avesso.

Esta é uma peça que tem motivos antigos, que são os que eu acho mais interessantes, porque não tem nada a ver com o bordado estereotipado. Nós sentimos que isto não é de agora, e, ao mesmo tempo, vai buscar as coisas muitos populares, as chaves, os dois corações… Mas isto vem direto das colchas de chita, não tenho a mínima dúvida sobre isso. As chitas desenvolveram-se a partir de finais do século XVIII e já ali se encontravam esses desenhos. Um dia vi um catálogo de bordados da Alsácia e pensei: "Isto parece mesmo Viana!". E tive que começar a pensar porque é que na Alsácia e em Viana os bordados tinham os mesmos desenhos. Na altura, o que circulava em termos de têxteis e em termos de modelos figurativos eram as chitas feitas na Europa, que copiavam os motivos indianos. As pessoas iam buscar os modelos aonde estivessem disponíveis. E, então, toda a Europa ia buscar os motivos às chitas. É por isso que há um ar de família no bordado popular de toda a Europa, porque ele vai utilizar os mesmos modelos.

É uma peça extremamente rica e resulta da intervenção de uma mulher, Geminiana Branco, que pertencia à mais alta burguesia de Viana do Castelo. Ela ouviu uma conferência da dona Ana de Castro Osório, feminista, em 1916, em que ela falava da possibilidade de ajudar as mulheres, a partir dos seus saberes, a terem recursos. Falou das rendas, dos bordados, da tecelagem, dessas coisas. A Geminiana pegou na palavra da Ana de Castro Osório e pôs umas mulheres a bordar e, com isso, criou a indústria do bordado de Viana do Castelo. Ela e a Ana de Castro Osório tinham em comum serem republicanas e serem elementos preponderantes da chamada Liga da Cruzada das Mulheres Portuguesas, que foi uma associação de mulheres criada para ajudar os soldados que estavam na primeira grande guerra e as mulheres que ficaram cá. Como era a Cruzada das Mulheres Portuguesas, elas punham sempre nos seus trabalhos a cruz de Cristo, que depois se começou a disfarçar, mas mantendo sempre a ideia de cruz.

BORDADO TERRA DE SOUSA

O grande centro de bordado do Norte é na Portela da Lixa, na zona de Felgueiras. Ainda hoje se borda lá muito. Têm coisas magníficas. Eu vou mostrar-vos.

Esta peça é absolutamente soberba. Diria que pode ser dos anos 1920, 1930. Vê-se pela perfeição e finura do bordado, pela variedade de pontos e pela utilização do canutilho. O canutilho é este ponto que está aqui no meio. Este ponto é um ponto muito especial, difícil de fazer. Neste tamanho, isto é dificílimo de fazer. O mais engraçado é que estas mulheres só conseguiam e conseguem fazer esta qualidade de bordado porque usam um bastidor muito especial, a que chamam de papelão.

BORDADO DE CASTELO BRANCO

O bordado de Castelo Branco é um mistério. Há realmente uma ocorrência enorme de peças – peças antigas – mas ninguém sabe quem as fez, em que altura foram feitas, onde é que foram feitas ou quem é que as mandou fazer.

O bordado é feito com seda natural, há o bordado chamado mais popular e o mais erudito, mas está tudo por saber. A certa altura fez-se uma grande exposição de colchas de Castelo Branco, em 1941. E todas as colchas que apareceram de seda foram consideradas de Castelo Branco. Neste momento, é muito difícil aceitar que algumas delas tenham sido feitas em Castelo Branco. São de tal maneira complexas e bem bordadas que não se percebe como em Castelo Branco existiria um mercado capaz de sustentar oficinas com aquela qualidade. E, portanto, pensa-se que as mais ricas foram feitas em Lisboa, até porque eu descobri que quase todas têm um ponto de bordado único, que também é só português e que é muito complicado de fazer. É um ponto fantástico porque nos dá uma localização – só em Portugal é que foi feito – e dá-nos uma datação, que é o final do século XVII.

Como é que se vê a questão do popular e do erudito no bordado?

O bordado de Tibaldinho [o bordado que se vê por cima é da Terceira, os outros são de Tibaldinho] é um bordado popular. O bordado erudito é um bordado mais profissional, tem um desenho muito mais cuidado. O bordado de Viana, por exemplo, mesmo quando o desenho é bom, é popular. No erudito há outro requinte. O de Castelo Branco é considerado popular. Mas isto era na altura em que se dizia que uns eram para o povo e outros para serem usados nos solares. Como se este bordado fosse feito em contexto doméstico... Na minha opinião, bem como a de outras pessoas, o bordado de Castelo Branco é um bordado oficinal. Para haver bordado tinha que haver desenho, tinha que haver debuxo. Não era qualquer pessoa que fazia um desenho. A questão do desenho classifica logo o bordado. Um bordado que pode ser considerado mais erudito – neste tipo de classificação, que eu não uso – é o bordado da Madeira, porque eles sempre tiveram desenhadores.

Como se interessou especificamente pelos têxteis? Não há muita gente nesta área, pois não?

Nem muita nem pouca, não há ninguém! Eu sou a melhor porque sou a única! [risos]