JOÃO PAULO MENESES

Colecionador de arte popular

João Paulo e Maria José Meneses iniciaram, há cerca de 25 anos, uma coleção de arte popular portuguesa, que os levou a conhecer o país de norte a sul em busca de peças únicas e originais. Durante vários anos realizaram uma recolha eclética e extensiva de objetos que mantiveram cuidadosamente expostos numa divisão da sua casa, em Vila do Conde, exclusivamente dedicada a este propósito. Com o passar dos anos e o surgimento de novas ocupações, decidiram vender a sua coleção à galeria Cruzes Canhoto, esperando que as suas peças encontrem agora um novo lugar e uma nova valorização.

Antes de desfazerem a coleção, conseguimos visitá-los em junho de 2017 para fotografar o espaço e os objetos, e para conhecermos as suas histórias, contadas com entusiasmo pela voz de João Paulo Meneses.

Queríamos pedir-lhe para se apresentar, falando um pouco do seu percurso pessoal e profissional.

A minha profissão é a de jornalista. Há 30 anos que sou jornalista e há 20 que sou professor universitário.

É cá de Vila do Conde?

Não. Eu nasci em Lisboa mas vivo em Vila do Conde há 50 anos, desde pequenino.

Quando é que começou o seu interesse pela arte popular?

As primeiras coisas de arte popular que eu vi foi na feira de artesanato de Vila do Conde, que já existe há quarenta e tal anos. Acho que a primeira deve ter sido em 80, 70 e tal. Aliás, fui eu que escrevi o livro dos 25 anos da feira de artesanato. E portanto eu habituei-me a ir, até porque a minha mulher trabalhava na organização da feira. Aí comecei a descobrir coisas que não sabia, das quais não tinha conhecimento. Só ouvia falar da Rosa Ramalho e pouco mais. E pronto, fiz uma espécie de estágio com essa feira. Depois começámos a ir a outras feiras. Começámos a comprar peças por gosto, e depois aquilo começou a ser uma bola de neve (como todas as coleções acontecem). Beneficiámos também de duas coisas: os preços eram sempre baratos. Quando começámos a comprar, as peças eram baratas. Face ao valor artístico que nós atribuíamos às peças, eram baratas. E depois havia pouca gente a comprar, havia pouco interesse. Foi assim que andámos quase vinte anos a comprar peças de artesanato, até que chegámos a um ponto em que se tornou um bocado insustentável em termos de espaço…

Lembra-se da primeira peça que comprou?

Não. Lembro-me de várias peças que comprei, mas não especificamente da primeira. Os meus preferidos eram os pratos, há aqui pratos que têm seguramente 25 anos. Começámos a fazer a coleção há 25 anos.

A partir de que momento passou a ter noção de que não estava simplesmente a comprar peças de arte popular mas a fazer uma coleção?

Há sempre algum momento em que a coisa se torna – não digo obsessiva – mas… Havia uma vontade grande de não fazer as mesmas coisas, de não comprar as mesmas peças. Então começámos a fazer coisas completamente absurdas – divertidas mas absurdas. Está ali uma peça fantástica de um senhor que já faleceu, e que fez essa peça à nossa frente. Ele fez a soenga – a fogueira – nós fomos, marcámos, e ele fez a peça à nossa frente. E houve outras histórias dessas. Começámos a querer… eu ia dizer sofisticar – ainda que a palavra seja um bocado pedante – procurávamos essa sofisticação. Mas não era a sofisticação pela sofisticação, nós não partilhávamos isto com ninguém. Era uma vontade nossa de não ter sempre as mesmas pecinhas.

Mas vocês conheciam outras coleções?

Não conhecíamos coleções privadas nenhumas, conhecíamos as feiras de artesanato. Fazíamos as feiras todas do país. Qualquer feira de artesanato, nós íamos. Mesmo feiras pequeninas, íamos de carro e descobríamos coisas absolutamente incríveis. “Mas há um senhor que faz…” E lá íamos nós. Foi assim que descobrimos a Ti Guilhermina. Andávamos na casa dos artesãos a comprar.

Genericamente como caracteriza a vossa coleção?

Nós começámos a comprar pratos, os tradicionais. Depois os artesãos conheciam-nos e traziam-nos no ano seguinte, para a feira de artesanato, coisas feitas de propósito, como aquele prato. Só existe um, foi feito de propósito, o senhor disse que partiu não sei quantos pratos para conseguir fazer este. Ele já nos trazia a peça de propósito para nós comprarmos. Esta também é uma peça que se enquadra perfeitamente nesse espírito: um cão feito por um artesão tradicional que quis inventar, porque sabia que nós queríamos coisas diferentes. Portanto, não há propriamente um tema… Nós procurávamos tanto coisas tradicionais, mais básicas, como coisas um bocadinho mais criativas. Não sei, não sei explicar.

Vocês têm bastantes obras mais contemporâneas, como é o caso do José Teixeira.

É, aquele é o meu favorito, é das poucas peças com que vou ficar, um homem a carregar o mundo às costas. Ele tinha coisas geniais, e fazia isto em Paradela do Rio, que é uma aldeia em Montalegre, que para chegar lá… era muito difícil.

Quais são os critérios que utilizava para comprar um objeto?

Pois, às vezes é difícil encontrar… porque isto era muito intuitivo.

Não tinham necessidade de comprar determinado objeto para completar a coleção?

Não, nós íamos era evoluindo. Depois dos primeiros cinco anos em que comprávamos um bocadinho de tudo… Nós temos inclusivamente outras peças na garagem que fomos desclassificando, que foram as peças que foram ficando para a segunda divisão. E portanto, depois dos primeiros cinco anos em que nós íamos aprendendo, já nos interessavam outras coisas. Interessavam-nos dois extremos: o mais tradicional possível que conseguíamos imaginar. Começámos a andar nos antiquários. Encontrámos aí peças quer da Rosa Ramalho, quer da Côta. Coisas antigas, muito antigas. Ou então coisas completamente fora do tradicional, que façam já a interseção com o mais moderno. Por exemplo, houve uma altura em que nos cansámos das peças da Júlia Ramalho, mas estas galinhas interessavam-nos. Ela fê-las a nossa pedido, fomos a casa dela buscá-las. Andávamos sempre assim. Aos fins de semana, era o que nós fazíamos (isso coincidiu com a altura em que não tínhamos filhos)… Parecíamos autênticos malucos! Parecíamos os salteadores da arca perdida, só que a arca eram as peças de artesanato.

Está então a dizer que o vosso processo de colecionismo teve duas fases: uma primeira de aprendizagem e uma segunda em que procuravam quer as peças mais tradicionais quer as mais contemporâneas. Houve mais fases?

Houve: quando começámos a perceber que não tínhamos espaço. Então começámos a ser muito seletivos, já não comprávamos quase nada, porque quase nada nos agradava. “Isso já temos, isso é igual…”. Por exemplo, os espigueiros. Das primeiras coisas que nós começámos a comprar foram os espigueiros. Onde havia espigueiros, lá íamos nós. A partir de uma certa altura os espigueiros eram todos iguais. Para simplificar: a coleção durou 20 anos. Os primeiros cinco, de aprendizagem. Os dez seguintes, mais seletivos, focados e dirigidos. E nos últimos cinco já só apanhávamos assim coisas muito especiais. Depois desses cinco anos deixámos de comprar.

Há quanto tempo é que não compram?

Para nós, já não compramos uma peça seguramente há cinco anos.

E esta sala? Começaram logo a colocar as peças nesta sala ou apareceu mais tarde?

Esse processo já é um bocadinho mais estranho. Comprámos dois apartamentos juntos e este espaço ficou vago, e então começámos a colocar as peças aqui. Mas mesmo com este espaço, chegámos a um ponto em que já não sabíamos o que havíamos de fazer. E, para ter assim, mais vale não ter. Eu não perdi o gosto, perdi o interesse. E portanto gostava que as peças não ficassem aqui amontoadas a ganhar pó. Eu imagino que as pessoas que comprem as peças vão dar uma importância que nós não damos agora. Não quero atribuir a isto um valor excessivo, mas acho que isto merece qualquer coisa que não seja estar aqui. Aqui as peças não estão a fazer nada.

Quais são os seus artistas populares preferidos?

De todos, é o José Teixeira, cuja mulher (não sei se ainda são casados) também é artesã e é tão boa como ele. Eles são realmente um casal espetacular, não há muitos em Portugal como eles. Ao nível do tradicional… a Ti Guilhermina, que nós conhecemos e que para nós foi sempre interessante, o Joaquim Alvelos do barro negro, de Tondela, e sempre me seduziu a autora destas peças. Estas peças eram baratíssimas, mas a capacidade que esta senhora tem de atribuir uma expressão… Maria Eugénia Cavaca. Acho que tem um potencial incrível.

E dentro dos “mais tradicionais”?

Não sei se é o génio da Rosa Ramalho ou se é o génio que fizeram da Rosa Ramalho, essa questão é muito importante. Não sei se é ela que era genial ou se as pessoas a fizeram genial. Mas claro que ela fazia peças que abriram os horizontes, face àquilo que, quarenta anos, depois os ceramistas de Barcelos continuam a fazer, que é tudo igual. Agora fazem peças de encomenda, dentistas e isso. Sinceramente, já não tenho muita paciência para isso. Prefiro aqueles que, inspirando-se na base tradicional, conseguiram evoluir, senão andamos sempre a repetir a mesma coisinha. Como aquele senhor, o Joaquim Alvelos, a gente dizia que ele era doido e ele reconhecia que era doido! Enquanto os outros lá de Molelos fazem este tipo de coisas [referindo-se a jarros e bilhas], ele faz isto, que não tem função. E estas peças é que têm piada, não necessariamente os jarrinhos e essas coisas.

Lembra-se de qual foi a peça mais cara?

Foi a procissão. Entretanto já teve feridos, e a senhora corrigiu, fez bonecos novos. Entretanto faleceu, agora já não é possível.

Quem a fez?

Maria Luísa [da Conceição], de Estremoz. E aquele prato é das irmãs Flores, que são as rivais. Nas feiras de artesanato nunca podiam estar juntas, então tinha: Estremoz, Figueiró dos Vinhos, Estremoz.

Era importante para vocês terem uma relação pessoal com os artistas?

Era. E nós tínhamos. Até porque eles tinham umas idiossincrasias muito próprias, nomeadamente a questão do dinheiro. Eles não sabiam quanto é que as peças valiam. E uma das coisas que nós notávamos muito era a dificuldade em atribuir um preço. Quando aparecia alguém que tinha muito interesse, eles pensavam: “O que se passa?!”. E desconfiavam. Nós fazíamos duzentos, trezentos quilómetros para ir ter com eles. Telefonávamos e dizíamos: “Nós vamos aí no sábado de manhã”. Eles pensavam: “Vem aqui um tipo no sábado de manhã?!?”. Estamos a falar há vinte anos, as coisas eram completamente marginais. Não havia circuito nenhum. A primeira vez era difícil comprar as peças… o Joaquim Paiva, por exemplo. Havia essa desconfiança. Mas nós mostrávamos que estávamos interessados no trabalho e não queríamos que eles fossem explorados, queríamos pagar o preço justo pelas coisas. Notava alguma dificuldade nisso.

Eles não estavam habituados a que o trabalho deles fosse valorizado.

Não, porque muitos deles nem a feiras iam. E quando vinha alguém de longe eles pensavam: “Mas quem é você? Para onde vai levar a peça?”. Às vezes evitávamos falar de nós, comprávamos só a peça.

Não se apresentavam como colecionadores?

Não, isso criava ruído na comunicação. Eles não estavam preparados.

Há alguns artistas aqui representados na coleção que vocês não tenham conhecido?

Sim, alguns. Mas diria que conhecemos cerca de 90%. Gostávamos sempre de falar com eles.

A vossa coleção estava também muito ligada a um passatempo, à pesquisa, às viagens…

Sim. Aos restaurantes… [risos]. Nós íamos mas tínhamos que comer! Andávamos por todo o país… Onde se pudesse imaginar. Se alguém nos dizia: “Na ponta de Sagres há lá um maluco que faz umas coisas”, lá íamos nós.

Há algum envolvimento emocional com a coleção?

Não, por isso é que a vamos vender. Nós demorámos cerca de cinco anos a tomar esta decisão, há cinco anos que isto está aqui fechado.

Não tem pena de se desfazer destes objetos?

Alguns, um ou outro tenho. Vou ficar com três ou quatro peças, mas, mesmo essas, tenho dúvidas onde as vou colocar.

Tem alguma curiosidade em saber para onde vão parar as peças?

Não, sinceramente não tenho. Quase de certeza que quem vai ficar com elas vai dar mais valor do que o que nós damos. O que é este valor? Nós brutálizamos o valor das coisas, elas são tantas que nos faz perder a dimensão da unidade, do valor de cada peça.

Coleciona mais alguma coisa para além de arte popular?

Hmm… Não sou colecionador de nada. O meu trabalho como jornalista está muito baseado em arquivo, portanto eu coleciono arquivos, devo ter ali mais de 10.000 fotocópias.

E também coleciona bonsais!

Não, eu produzo! E também está ligado a isto, porque a partir do momento em que comecei a levar os bonsais a sério… não tenho tempo para mais nada! O artesanato ocupava-nos muito tempo ao nível das deslocações. Isto aqui já é muito sério, tem que ser regado…

Acha que houve uma substituição do lugar ocupado pela arte popular pelos bonsais?

Não sei se houve uma substituição propriamente dita, porque houve uma altura em que as coisas coexistiram. Não acho que houve substituição, houve apenas um processo de desinvestimento na questão da coleção pelas razões que eu disse. Eu só comecei isto dos bonsais em 1998, e nesse ano estava no auge do artesanato.

Manteve um inventário das peças. Estão todas identificadas?

Teoricamente, tudo tem a sua etiqueta. Por exemplo, os espigueiros. [Abre a porta de um espigueiro.] Espigueiro de Arcos de Valdevez, comprado em Ponte da Barca, Agosto de 96, 6 contos. [Abre a porta de outro.] 1999, 7 contos e 500, Penafiel. Nós tentávamos registar tudo. E agora uma história para terminar: esta peça. "Precisamos de comprar esta peça porque esta é a peça mais feia que alguma vez vamos comprar!" [risos]. E é da Júlia Ramalho! Mas a peça é absolutamente lamentável, e comprámos por isso. A peça não tem história, é mesmo porque é a pior peça que existe.

Qual a sua opinião sobre o estado atual da arte popular portuguesa?

Acho que está melhor do que estava… até diria que está melhor do que nunca. Só por isto: porque pela primeira vez (primeira vez não necessariamente agora, mas, digamos, nos últimos vinte anos) percebe-se que há interesse e preocupação, e um estatuto para o artesão, que não havia quando nós começámos a fazer esta coleção. Hoje existe uma consciência, informação. Não vou dizer que está na moda, também não vou chegar a esse ponto. Mas acho que é uma situação completamente diferente do que antes. A internet, a capacidade de expor os trabalhos, o facebook, as pessoas divulgarem as coisas que fazem, nem se compara. Há um público que procura…

E ao nível da produção dos artistas, de hoje em relação ao passado?

Acho que é um bocado irregular. Se considerarmos que em alguns deles há uma dose de génio, isso não é algo que se compre. Eu vou todos os anos à Feira de Vila do Conde e vejo sempre dois ou três tipos que fazem a diferença. O autor destes Cristos apareceu há quatro ou cinco anos. Há qualquer coisa de especial nisto… Ele tem um pé na tradição mas vai para além disso. Ele é capaz de vender para todo o mundo, antes vendia na portinha dele e pouco mais.

Há mais algumas histórias com os artistas que queira partilhar connosco?

Por exemplo, estes alentejanos. Isto não existe, o senhor fez para nós. Estes são normais, mas daquele tamanho nem pensar. Ele tomou a iniciativa de trazer pela cabeça dele. Nós não queríamos ficar com eles. Mas ele tinha trazido, e da maneira como ele colocou as coisas…

Foi numa feira?

Sim, aqui na feira de Vila do Conde. Ele já nos conhecia de anos anteriores, e quando nos viu disse: “Tenho uma coisa para vocês, vou ali ao carro buscar”. E quando chegou eram estes monstros! [risos]. Eles são curiosos no sentido em que são únicos. Eu não queria ficar com eles, também não eram muito baratos… Não tivemos coragem de dizer ao senhor que não, e ficámos com eles. E isto acontecia. Eles tomavam a iniciativa de nos trazer coisas. Por exemplo, esta peça, a última peça que comprámos. (Não me lembro da primeira mas lembro-me da última). Ele queria saber para onde a peça vinha. E nós: “Vai para nossa casa”. “Pois, mas eu não costumo largar as peças sem saber para onde vão”. Tipo um filho! E o senhor veio cá a casa para saber onde estava a peça. Cada peça era quase uma história.