JOSÉ CORREIA

Escultura em madeira, Caminha

O nosso primeiro contacto com o senhor José Correia deu-se há vários anos, ainda antes de termos decicido avançar com uma recolha dedicada à arte popular portuguesa. Nascido em Moledo, Caminha, em 1920, ele terá sido, indubitavelmente, uma das pessoas que nos levou a desenvolver este projeto, já que quando o conhecemos ficámos simultaneamente fascinados com o que encontrámos e surpreendidos pelo que parecia ser um desconhecimento generalizado da sua existência. Ao contrário de outros artistas que se podem designar como populares, outsiders, marginais ou simplesmente autodidatas, o seu trabalho nunca foi divulgado em nenhuma publicação relacionada com estas temáticas, e o seu legado encontra-se apenas nas mãos dos seus familiares.

É, portanto, com especial agrado que, depois de algumas tentativas infrutíferas, conseguimos entrar em contacto com o senhor José Correia, visitar o seu espaço de trabalho e exposição, e ouvir as histórias que tinha para nos contar. A entrevista foi realizada em maio de 2018, e fomos calorosamente recebidos pelo senhor José Correia e pela sua filha.

Foi difícil apanhá-lo, já há muito tempo que queríamos conhecê-lo!

Há uns seis meses que eu não venho para aqui.

Tem estado doente?

Tenho, tenho estado de cama. Levantei-me para vir atendê-los. Eu antigamente estava sempre com isto aberto, de manhã e de tarde. Desde dezembro está fechado.

O que fez na vida?

Até aos 14 anos trabalhei na lavoura – todas essas ferramentas de agricultura que estão aí, trabalhei com elas. Fui fazer 14 anos a Lisboa. Trabalhei como estucador até aos 22, em Lisboa. Aos 22 casei-me. Vim para o comércio. Fui viajante e vendedor de máquinas da companhia Singer.

Veio para Caminha depois de casar?

Sim. Casei-me aqui nesta casa. Depois daqui fui para Monção, estive lá 18 anos. Fui classificado como o melhor vendedor de Portugal de máquinas de costura. Recebi um diploma, que tenho ali, e duas libras em ouro como prémio. De forma que, depois de os meus sogros falecerem, eu vim tomar conta disto e aqui estou. Depois, para passar o tempo, fui fazendo uma brincadeira ou outra e fiz tudo isto.

Mas quando começou a fazer estas peças?

Em 1980.

Porque é que começou?

Comecei pelo seguinte: quando era garoto e ia buscar as vacas ao monte, fazia lá umas coisas destas... Quando vim de Lisboa encontrei este sachinho, mas só tinha esta parte, não tinha o cabo. E decidi fazer o resto. A minha esposa achou muita graça, gostou muito de ver isto. Depois comecei a fazer outra coisa, e outra, e outra... Entusiasmei-me e fiz tudo isto que aqui está! Está tudo aqui exposto. Não vendi nada, nem vendo nada.

Porque não vende?

Porque não vendo, isto é uma exposição, não se pode vender. Chama-se “Moledo da minha infância”. São as minhas memórias.

Fui o melhor vendedor de máquinas de costura...

Já estava reformado quando começou?

Antes, ainda fazia qualquer coisa, mas pouco. Depois de me reformar propriamente, e passar o estabelecimento que tinha aqui à frente, é que comecei. Aluguei o estabelecimento e para passar o tempo comecei a fazer estas brincadeiras todas. Tenho à volta de 650 e tal peças! Tem aqui muita hora de trabalho!

E, depois de se reformar, passava aqui o dia?

Todo, de manhã e de tarde. Ia comer e voltava. Era o meu emprego.

Todas as peças têm um número, não é?

Sim, se não têm todas, têm quase todas. Têm as datas e os números.

Tem algum inventário?

Está acolá um livro que tem parte delas. Não estão todas mas quase.

E as etiquetas?

Isso é a minha filha que fez.

Tem aqui peças mesmo bonitas!

Eu nunca fui artista disto, é uma curiosidade minha.

Tem alguma peça preferida?

Não, gosto de todas. Primeiro comecei pelas ferramentas de agricultura. Depois as da casa, os mobiliários de casa. Depois os santos e os cristos. Depois bandeiras, depois monumentos. Foi o me que lembrou de fazer.

Onde foi buscar os modelos destas bandeiras?

Tirei-as do livro de História, desenhei-as e fi-las. Melhor ou pior, o que está aqui é feito por mim. Têm-me querido comprar peças mas eu nunca vendi. Isto fica para os meus netos e eles que façam o que quiserem.

É madeira, o material que usa?

Sim, há umas coisas em ferro mas é quase tudo madeira. Isto deve ter muita teia de aranha, porque eu já não vejo.

Não se preocupe, está tudo muito bonito. Esta exposição tem uma parte dedicada ao país e tem uma parte das suas memórias, é isso?

Sim, tem a bicicleta que tive, o barco que tive. A igreja onde eu fui batizado, a casa como era quando eu nasci... As datas de nascimento e batismo, a praia de Moledo, umas capelas por aqui fora.

Qual é a história desta figura, "Do último ao primeiro"?

A ver se eu me lembro... Esta é:
Ministros, presidentes e deputados,
Comedores de dinheiro,
Todos enforcados,
Do último ao primeiro.
E aqui é:
Almoços, jantares, passeios e bola,
Estes comedores põem a gente a pedir esmola.
Acho que é assim.

Mas isso que está a dizer, foi o senhor que escreveu?

Fui. Esta aqui: um sonho. Estava a trabalhar e morri. Vieram dois anjinhos e levaram-me para o céu. Cheguei ao céu e o São Pedro começou a falar comigo. Deu-me uma dor de barriga e procurei um quarto de banho. "Quarto de banho aqui não há, é um buraco aí!" Fui ver e disse: "Ó São Pedro, não pode ser aqui." "Porquê?" "Estão lá em baixo os meus amigos." "Ai é? Quem são?" "São os governantes do país." "Ah... Tu que fazias lá em baixo?" "Era comerciante." "Então eles compravam-te muita mercadoria." "Não, mercadoria não compravam." "Não te cobravam impostos?" "Não, até subiam os impostos." "Ai são teus amigos?! Não te compram a mercadoria e cobram-te os impostos?! É mesmo neles que deves fazer!" [risos]

O "Amigo da Onça"!

Pois, pus disfarçado para chamar a atenção.

Mas então cada peça tem a sua história?

Claro.

E o Zé Povinho?

Era aquele que andava, como dizer-lhe... queria fiado, toma! E eu pus, queres figos, toma!

Esta banda com os nomes, Saricoté, Naxo e Serrafila? Estas pessoas existem mesmo?

Existiram! Aqui em cima, na serra, há uma capelinha, a Senhora da Serra. Então escreveram-lhes uma carta – eram uns fulanos que tocavam uns bombos e andavam por aí pelas ruas e tinham esses nomes que aí estão – a dizer que havia uma festa boa que era para eles comparecerem lá para tocarem. Então um vai ter com o outro e diz: temos que nos preparar bem porque vai haver uma festa boa e temos que ir lá tocar. Chegou o dia, e lá vão eles pela serra acima – catapum pum, catapum pum. No final, à noite, quando era para receber, alguém lhes perguntou: "Gostaram da festinha?" "Sim. Tocámos e tocámos bem." "Quem é que os chamou?" "Temos aqui uma carta que nos convidou..." "Ah, mas ninguém escreveu!" Diz um para o outro: "Deixa lá, tu é que tens que me pagar, tu é que me chamaste!" E assim foi, eles andaram todo o dia perdidos a tocar no meio do monte.

Qual foi a última peça que fez?

A última peça que fiz foi esta. [Aponta para um conjunto de 4 figuras que parecem dançar ao som de uma concertina.] Isto é o seguinte: acolá está a capela do São João d’Arga. As pessoas iam no dia 28 de agosto ao São João d’Arga e levavam o lanche e a concertina para dançar.

E quando a fez?

Há-de ter aqui a data: 17.05.2017.

Também fez os suportes das peças?

Sim, tudo isto é feito por mim. Os móveis também.

Quando é que o seu pai decidiu tranformar este espaço num museu?

Filha – Foi pouco depois do ano 2000. Em 2000 ele fez 80 anos. Nós quisemos fazer uma surpresa, uma exposição no Centro Paroquial de Moledo. Ele nem sabia – nós levámos tudo em caixotes – estava tudo em caixotes – e montámos lá. No dia em que fez 80 anos foi a abertura da exposição. Na altura tinha 76 peças.

Então numa fase inicial estava tudo em caixotes, só depois é que ele montou esta exposição?

Filha – Exato, em 2000 ainda estava em caixotes. Nesse ano, foi a exposição temporária e só em 2003 montou a permanente. Ele começou a ser entusiasmado por muita gente que gostava das suas peças.

E não houve/há nenhuma instituição a divulgar o trabalho dele?

Filha – Os jornais locais começaram a fazer alguma divulgação. Também esteve na Praça da Alegria. A Câmara publicou durante muitos anos a exposição na agenda cultural, fazia parte da agenda cultural e do roteiro da feira medieval. De há uns três anos a esta parte, não. Em dias de feira [medieval], o meu pai estava aqui vestido a rigor muitas vezes até às onze da noite!

É incrível o que o seu pai construiu aqui!

Filha – Isto deu-lhe anos de vida! Ele deixou de ver, não pode ler, não pode ver o telejornal... Ele ficou muito em baixo depois de a minha mãe falecer, e nós insistimos sempre para que ele venha cá para baixo, mesmo se for apenas para receber as pessoas que queiram visitar.
JC – Já perdi o gosto a isto.
Filha – Mas agora é hora de voltar para aqui. Vamos ter que limpar isto tudo e depois voltamos a abrir.