QUERUBIM QUEIRÓS ROCHA

Olaria de barro negro, Bisalhães, Vila Real

De entre os vários artistas e artesãos com quem temos contactado, Querubim Rocha encontra-se certamente entre os menos expansivos. A timidez não o impede, contudo, de partilhar connosco a sua história de vida, falando-nos do seu percurso na olaria enquanto fixa constantemente a peça que vai moldando com as mãos. Apresentando já uma idade avançada, Querubim divide o seu tempo entre a sua oficina em Bisalhães – a única preparada para receber visitantes que queiram conhecer o processo de fabrico do barro negro – e o ponto de venda na estrada à entrada de Vila Real.

Recebeu-nos na sua oficina em janeiro e em maio de 2018 e foi respondendo às nossas perguntas sem nunca deixar de trabalhar na roda. Para além da forma como começou a trabalhar com barro, Querubim Rocha partilhou a sua opinião sobre o processo de classificação da olaria de Bisalhães pela Unesco, defendendo a necessidade do ensino das técnicas tradicionais nas escolas locais.

É daqui de Bisalhães?

Sou, sim.

Nasceu nesta casa?

Não. Nasci numa casa que está ao fundo ali naquele largo, com um portão feito em pedra. Nasci naquela casa em 1940.

Quando é que começou a fazer peças em barro?

Comecei com nove anos. Comecei a arranjar a roda e a divertir-me ao pé dos meus irmãos. E foi assim. Comecei a aprender aos nove e aos onze já andava a ganhar os dias.

O seu pai já era oleiro? Foi com ele que aprendeu?

Foi com os meus irmãos. O meu pai morreu tinha eu seis anos. A roda até fui eu que a pedi a um vizinho, que tinha uma roda assim pequenina. Pedi que ma emprestasse. Ela estava toda escangalhada e eu, pouco a pouco, lá a compus.

Trabalhava com algum oleiro ou por conta própria?

Eram umas senhoras que me chamavam.

Faziam-lhe encomendas?

Sim, vendia-se muito. Umas peças grandes, cântaros, canecos, tudo para venderem na Régua, Vila Real, Murça, Alijó... Usava-se muita louça para fazer a sopa, fazia-se umas cassandas para se levar o comer para as vinhas para os trabalhadores. Antes de virem os plásticos... Ia-se para o lado da Régua e vendia-se muito disto para levar para o Douro, para o trabalhador. Depois apareceram os plásticos e findou tudo isso. Virámo-nos mais para esta louça fina, para o turista e assim.

Qual é a diferença principal entre a louça churra e a louça fina?

Sabe, a louça fina tem de ser barro mais… tem de passar por uma peneira fina. A louça churra não fica com o barro tão fino, não fica tão lustroso.

Chegou a ter alguma outra profissão durante a sua vida?

Não, nunca tive. Ainda fui para Lisboa, mas estive lá três meses e vim-me embora.

Não gostou?

Não. Não gostava de estar fora da terra.

O que é que ia fazer para Lisboa?

Olhe, andei lá em Alcântara a trabalhar, na Rua da Madalena. Andei para lá e depois vim-me embora. Devia ter vinte anos, vinte e poucos.

Nunca mais saiu daqui de Bisalhães?

Não. Depois andei sempre a ganhar os dias nisto. Lancei-me e trabalhei sempre por minha conta.

Trabalhou sempre sozinho ou com outras pessoas?

Eu? Olhe, esta roda era do meu sogro, já tem mais de duzentos anos, aquela era do meu pai… Tive pessoas também a trabalhar para mim. Tive o meu sogro e outras pessoas, às vezes, para fazerem estes alguidares, enquanto eu fazia essas peças que não havia para aí. A gente inventava umas pecitas. Quando era mais novo, gostava de fazer peças diferentes. Por isso me deram o primeiro prémio numa feira em Vila Real.

A sua esposa trabalhava consigo?

Essa é que fazia tudo! Preparava o barro, fazia os desenhos, ela fazia tudo! Agora sou eu que faço tudo.

E os seus filhos não trabalham nisto?

Os meus filhos… Um trabalha na Universidade e outro trabalha na Câmara. Ganham-no sem se sujar muito. O meu rapaz vem às vezes ajudar-me, mas coitado! Também não vê bem, anda de óculos, começa a suar e os óculos a escorregarem… é um problema!

Já ensinou alguém?

Ensinei o meu neto que fazia qualquer coisinha. Já ensinei também uma professora que era de Lisboa. Comprou-me uma roda para levar. Muitas mulheres me têm pedido para as ensinar mas, às vezes, não há assim muito vagar. Para ensinar a gente tem que perder tempo.

Mas gostou de ensinar outra pessoa na roda?

Gostava de ensinar, gostava mas… Deram para aí cursos, mas eu não os quis ensinar, porque sabia que não dava em nada. Isto tem de começar logo desde novo, desde miúdo, na escola.

É difícil arranjar quem queira seguir isto?

Difícil, não é. Era a Câmara ou o Turismo darem garantias a essa gente nova. Agora, eles veem isto tão difícil, a cozedura. Se eles modernizassem o forno e a preparação do barro, se facilitassem ir buscar o barro e dessem despacho ao que fazem, a coisa compunha-se. Agora, assim, não! Isto foi para a UNESCO, pronto, nunca mais fizeram caso disto. Se não fosse eu, vinha o turista e não tinha nada que ver aqui. Veio aqui a Sra. Dra. da Cultura comprar umas peças para pôr lá numa loja e eu disse-lhe assim: “Oh Sra. Dra., a Sra. Dra. podia-me ajudar a comprar uma televisão para pôr ali. Eu tenho a cassete comigo a cozer a louça. Os turistas estavam aí a comprar e a ver aquilo”. E ela respondeu: “Não temos dinheiro, não temos dinheiro…”. Então, se não fosse eu aqui a representar o turismo, o que é que eles viam? Ainda ontem vieram uns senhores aí comprar-me, do Porto. Andaram aí a ver se viam alguma coisa e não viram nada! "Então, afinal não há aqui mais nada!" Se não for eu, o que é que é? Oh! Só têm dinheiro para o que eles querem!

Qual é a sua opinião sobre esta classificação da UNESCO?

Olhe, para já, para já, ainda tem sido pior! Primeiro ainda vinham uns “turistazinhos” mais ou menos, e agora lá vem um de vez em quando, mas de resto… Porque eles têm isto mal organizado. Os turistas vêm todos para a Régua. Na Régua, metem-nos numa carreira e Palácio de Mateus. Palácio de Mateus, dão ali a volta à cidade, da cidade outra vez Régua. Eles deviam ter a orientação de vir ver as aldeias. Não! E é assim que os turistas… lá vem um ou outro que quer mesmo ver Bisalhães, isso lá eles vêm. Mas de resto não veem mais nada.

Esteve envolvido no processo da UNESCO? Veio alguém falar consigo?

Deram-nos um diploma e uma medalha de ouro, mais nada.

O que acha que deveria ser feito para melhorar a divulgação?

Então, eles diziam que faziam aí um museu, que restauravam não sei o quê, que faziam não sei o quê. Até hoje ainda não fizeram nada! Esse museu já está prometido há mais de não sei quantos anos, um posto de informação para o turismo, nada! Chegam aqui… Afinal que informação há? Não há nada! Quando forem abrir os olhos, já não vão a tempo.

O senhor Querubim já participou em eventos ligados à divulgação da olaria de Bisalhães?

Já fui a Espanha e já fui muitas vezes a Lisboa, ao Estoril, a Cascais, a Belém, fui lá muitas vezes! Agora é que não vou porque não tenho ninguém. Já fui várias vezes à NERVIR [feira organizada pela Associação Empresarial], aqui em Vila Real.

Quando forem abrir os olhos, já não vão a tempo...

Há algum momento que considera que tenha sido o melhor da sua vida enquanto oleiro? Houve algum momento em que as coisas correram mesmo, mesmo bem?

Correr bem… andar aos dias não me custava muito. A gente era novo e trabalhava ao pé dos porcos. Ali aquele cheiro e nós a trabalhar, tinha eu os meus dezassete, dezoito anos. Eu estava ali mas não gostava nada. Depois, era uma semana para ganhar – naquele tempo eram escudos – 100 escudos. Depois que me virei mais para isto, fomos para a estrada dali do Marão, aquela estrada que vai para o Porto, a antiga. Num dia que fui lá, trouxe logo cento e tal escudos e disse:  “Ah! Afinal isto está a correr bem!”. Pronto, foi daí que eu comecei sempre a fazer isto.

Destes anos todos em que foi oleiro, o que mudou mais? O que mudou ao longo do tempo do que era ser oleiro, por exemplo, nos anos cinquenta e o que é ser oleiro nos dias de hoje?

Sabe o que é que mudou? A gente quando trabalhava nisto antigamente, as raparigas nem olhavam para a gente. "Olha, vai ali o paneleiro", assim e assado! Não gostavam dos rapazes que trabalhavam nisto! Depois que isto começou, foi diferente. Havia uns senhores – um deles tinha uma pensão – que foram representar a nossa arte a um restaurante ali para o lado do Porto. Apresentaram o arroz nos nossos alguidares. Foi daí que os alguidares começaram a ter fama, que a nossa louça começou a ter fama. Começaram a fazer louça fina e toda a gente olhava. Havia só dois que faziam, o Joaquim Mestre e o Nascimento. Depois começaram a ganhar fama e já toda a gente olhava para os oleiros: "Ah, já estão ricos! Já são assim, já são assado!". Mas antigamente, ninguém olhava para isto! Nós andávamos com isto às costas, uma lonjura! Trocavam isto por batatas – os alguidares e os panelos –, por castanhas e, depois, vínhamos para cá outra vez carregados com as batatas e as castanhas. Era assim!

Trocavam as olarias por batatas e castanhas, era isso?

Era. Dava o panelo, enchiam de batatas ou castanhas, despejavam-nas e levavam o panelo.

Esse almoço de que falou, tem ideia de quando é que foi?

Ui! Isso já foi há muito ano. Eu tenho o livro desse doutor que era Presidente da Junta. Depois de fazeram o tal almoço, nunca mais estes alguidares perderam a fama de fazer o arroz de forno. Daí começou a fama dos alguidares! É o potinho pequeno.

Então, quando começou, este tipo de trabalho na olaria não era muito bem visto e depois começou a ser mais bem visto?

Havia aí dois que começaram a fazer isto, eram uns senhores! Depois eu também abri os olhos e comecei a fazer. Eles vendiam as peças a vinte e cinco tostões e eu deu-me a mania de fazer um pipo com uma cara. Nunca tinha feito nada, mas apeteceu-me e fiz um pipo com uma cara. Vieram aí uns senhores e deram-me vinte e cinco escudos, naquele tempo! Oh, que revolução que aí foi! Como é que ele foi fazer isto?! Que revolução aí foi! E foi um senhor que o vendeu, não fui eu! Ele foi lá buscá-lo, mostrou ao gajo e disse assim: Então, ele quanto quer? E ele disse: Eu não sei, nunca vendi nada disso! Pegue lá vinte e cinco escudos. Caramba! Eles vendiam as peças a vinte e cinco tostões! [risos]

Hoje em dia que tipo de peças produz mais?

Agora produz-se muitas assadeiras, tachos e alguidares para o arroz. São muito procurados. Ainda ontem veio aqui um senhor do Porto, de um restaurante. Vêm aqui muitos para restaurantes, para pôr à mesa. Esta louça é uma categoria, faz um arroz que é uma maravilha!

As peças decorativas também têm saída?

Estas pecinhas mais pequenas o estrangeiro gosta muito.

Têm vindo muitos estrangeiros cá?

Olhe, este ano, por acaso até vieram menos. Eu não moro aqui, moro noutra casa ali em baixo. Mas fui obrigado a comprar aqui esta porque eles não se encaminhavam muito para lá.

Que ferramenta usa para fazer os desenhos?

Olhe, é assim um pauzinho, um gogo [uma pedra lisa de forma arredondada] para lhe dar o lustro.

De onde é que vem este barro que utiliza?

Primeiro, vinha dali ao fundo de Vila Real, em Parada de Cunhos. Este ainda é de lá. Mas como as cerâmicas fecharam – não tiram por nossa causa, porque nós gastamos pouco – agora vamos a Chaves buscá-lo.

Já vem assim preparado ou tem de fazer alguma preparação?

Olhe ali uma senhora, coitada, que já está no outro mundo! Era a minha mulher, ali com o maço no ar para picar, para fazer o pó, para depois peneirar e amassar como o pão.

Então ainda faz esse trabalho?

Ai não, que remédio! Ele vem em pedra como a cal! Tem de se desfazer em farinha.

Isso é um trabalho pesado, não?

O mais pesado é cozer a louça. Cozer a louça a mil graus, com este calor… Quando vem o calor é um problema.

Onde coze as peças?

Num forno que tenho lá em baixo, na outra casa.

É um forno a lenha ou é elétrico?

Não, a lenha.

Quantas horas demora esse processo?

Eu tinha a mania de fazer vinte e quatro horas. Agora como as fornadas são mais pequenas, coze-se de manhã e tira-se à tardinha.

E quantas vezes por ano é que faz?

Eu agora cozo poucas. Primeiro, fazia nove e dez fornadas por ano, mas eram fornadas de mil e tal peças!

Faz esse trabalho sozinho?

São cinco e seis pessoas a ajudar-me. Uns são da família, outros são de fora. Tenho de os chamar e pagar. Pagando-lhes, ainda tenho de lhes agradecer, nem todos querem aquele serviço! Aquilo é um calor infernal! Até eu, às vezes, fico com o cabelo chamuscado. A gente quando está a fornear a louça não pode desistir, se não estraga-se tudo. Tem de se estar ali atento.

Como faz para que a louça saia preta?

Olhe, tem que arder muita lenha. Arde muita lenha por baixo, outra por cima. Abafa-se, fica lá o fumo isolado e o carvão e depois tem de ficar preta. Se não ficar, torna-se a cozer.

Há muitas peças que se estragam durante o processo?

Há, há. Às vezes, umas nem tanto, mas outras vezes… até a gente a metê-las, não sei como é, tropeça…

Muito do trabalho que tem acaba por se estragar?

Se for uma peça destas que parta o bico, cola-se e vende-se mais barata. Se for uma de fazer o arroz, toca a botar fora! Não vá a gente compor e ela partir no forno ou escaldar alguém. E depois não é isso, é que se perde o freguês…

Ainda produz algumas peças por encomenda?

Tenho muitas, mas agora não posso. Fui operado ao coração e à coluna. Tinha quinhentas malgas, tinha outras quinhentas dali e tinha trezentas e tal doutras. Tinha para a Praça de Alegria, uns pratos para o chefe que lá vai fazer a comida, mas já não posso.

Trabalha na olaria todos os dias?

Todos os dias. Antigamente, quando era mais novo, trabalhava de noite e de dia. Há pessoas que trabalham nisto e não se importam. Não pulem as peças como deve ser, fazem de conta. Eu não, tem de ser tudo bem polidinho.

Não acha que este trabalho é muito silencioso?

Ah, eu gosto.

Gosta? Está aqui muitas horas.

Gosto do silêncio. Às vezes vou até ali fora e tal… Havia aqui um café mas fechou. Agora mais silêncio há.

Entrevista conduzida por Maria Manuela Restivo e Evaristo Moreira*.
* Moreira, E. (2018). Ensino online da olaria de roda baixa: Um estudo das representações sociais. Mestrado em Multimédia. Universidade do Porto (https://dei.fe.up.pt/mm/pt). (Orientado por C. Morais e coorientado por L. Moreira e M. M. Restivo).
Disponível em http://hdl.handle.net/10216/114332