JOÃO MÉRTOLA

Olaria, Redondo, Évora

Aos 91 anos, João Mértola, também conhecido como o Mestre Pintassilgo, é o mais antigo oleiro do Redondo no ativo. Como tantos outros da região, nasceu e cresceu numa olaria, tendo desde cedo acompanhado o seu pai no ofício. De atitude irreverente e língua destravada, João Mértola mantém, porém, uma encantadora malícia, que se exterioriza nas suas frequentes gargalhadas sardónicas. Há vários anos que se dedica a produzir pratos decorativos, que ornamenta predominantemente com pássaros e flores, “à antiga”. À medida que a precisão do traço se vai desvanecendo com a idade, os seus pratos têm vindo a adquirir uma curiosa estética naïf, que os aproxima da arte bruta.

Apesar de algumas dificuldades motoras decorrentes da idade avançada, João Mértola desloca-se ainda diariamente à sua olaria, situada junto à muralha do Castelo do Redondo, onde esta entrevista ocorreu, em Agosto de 2020.

Então, de onde é que vocês são?

Do Porto.

Eu gosto muito de ir comer à Afurada!

Faz muito bem! É muito bom o peixe lá. Para começar, diga-me o seu nome.

João Sernadinha Mértola.

Em que ano nasceu?

Ah, isso agora já não me lembro! Tenho 89. Nasci a 1 de Dezembro.

Está quase nos 90.

Vou fazer 90. Já fiz!

Então já tem 90!

Já tenho 90!

Quando começou a trabalhar o barro?

O meu pai era oleiro. Eu nasci dentro da oficina.

Já era aqui?

Não, era noutro lado.

Como se chamava o seu pai?

Zé Mértola, era a olaria Zé Mértola. O meu pai não era oleiro, era vendedor, mas tínhamos homens a trabalhar.

Quem trabalhava na olaria?

Naquela altura era assim: um dia vinha um, noutro dia vinha outro... Havia muitos oleiros.

Foi à escola?

Tenho o exame da quarta classe, fiz à noite.

E depois deixou?

Então!... O meu pai fabricou logo dez filhos! [risos] Havia fome a rachar, miséria.

O que acha que a olaria do Redondo tem que as outras não têm?

Isto é assim: cada um tem o seu feitio de trabalho. Eu trabalho toda a qualidade de louça. A minha louça é diferente deles todos. Estou a trabalhar no antigo, como quando vim aprender o ofício. As minhas feituras é tudo da minha cabeça. Eu não tenho papéis, não tenho nada. Eu aprendi a fazer tudo, tudo, tudo! Cântaros deste tamanho, tarefas para a azeitona, alguidares para a massa. Eu aprendi o ofício todo. E ainda estou a aprender. Bonecos, Santo António, faço tudo.

Tem algum ajudante?

Ninguém. Tive aí uma moça a pintar. Mas depois ela marchou e nunca mais tive ninguém.

E vende bem?

Só vendo aqui. E em exposições. Eu já fui a Berlim fazer uma exposição!

Quem é que o convidou?

O consulado da Alemanha.

E feiras de artesanato, costuma fazer?

Só este ano é que não faço! Lá para o Porto faço muitas. Fazia em toda a parte.

Vai sozinho?

Vou com o meu genro.

Ele não quer dar continuidade aqui ao negócio?

Ele é só vendedor de louça.

O que mudou aqui na olaria nos últimos anos?

Mudou tudo! Olha, apareceu o plástico, deu cabo da olaria. Fazia cântaros, fazia barris, fazia isto tudo e o plástico deu cabo disso. Fazia bilhas para a água, deu cabo disso tudo. Fazia alguidares grandes. O plástico é que deu cabo disso tudo! Fazia panelas p’ró lume aos milhões. Veio o plástico, acabou! Veio o alumínio. Acabou isso tudo.

Mas, então, agora vende o quê?

Peças decorativas.

E dá para viver?

Vivo com o que vendo aqui e com o poucochinho da reforma. Tenho a casa paga e não devo nada a ninguém. Estou sossegado. Estou no paraíso! [risos] Ninguém me apoquenta. Quem me apoquenta, rua! [risos] Vêm os chineses, esses piquininos, pedem para entrar. E eu: «Fresco!» [risos] Eles brincam comigo. Eles tiram fotografias, depois levam e fazem logo lá.

Fazem igual?

Fazem igual! Por isso é que eu não os quero aqui à porta. Passam aí aos bandos. E eu digo “não quero dinheiro!”.

Porque é que não os quer cá?

Eles tiram fotografias. Estão uma hora de volta de um prato, a tirar, a tirar, a tirar... Depois vão embora e não dizem nada! Não compram. Tiram o molde e tiram tudo. E depois, quando me descuido, já eles imitam. É como o tapete de Arraiolos. Deram cabo do tapete de Arraiolos por causa disso. Chegavam e tiravam fotografias aos tapetes. Em Ponte de Lima, estava eu a fazer uma exposição com umas senhoras de Arraiolos que são minhas amigas. Então o que é que oiço: tiraram fotografias aos tapetes da senhora. Logo no outro ano: igualito! Igualizam as coisas. E a gente contou ao presidente da Câmara que isto não se faz! Tirar fotografias àquela peça e depois aparecer aos milhões! É assim a vida.

Vende mais para portugueses ou para turistas?

Eu vendo aos turistas. Quer dizer... os outros vendem para a revenda. Eu não vendo para a revenda, eu só vendo aqui em casa. Vendo diretamente aqui. Quem quiser, vem aqui. [risos] Não quero encomendas! Essa peça aí: vendo aqui em minha casa a dez euros, eles querem cinco euros! Ganham duas vezes, o dobro! É por isso que eu embirrei com eles e não vendo a nenhum. «É, mas tem que vender, tem que fazer um desconto.» Não! Pagas o preço que pagam os outros. «Ah, tem que fazer um desconto.» Não faço desconto. Estes gajos da revenda estão cheios de dinheiro à custa dos oleiros! Então pus este sistema, aqui em minha casa há só três preços: é de dez, é de cinco, e é de dois euros.

O que mudou mais nos últimos tempos?

Se não houver turista, não há venda de louça.

Acha que a Câmara devia apoiar mais os oleiros?

Sim. Vem a escola, depois as férias. Podiam vir três ou quatro para a minha oficina. Para outra oficina, três ou quatro. Para ver se as crianças começavam a aprender. E não se faz nada disso!

Dá-se bem com os outros oleiros?

Sim. Dou-me bem com eles todos. Eu não tenho empecilho deles e eles não têm empecilho de mim. Se eles precisarem de um favor, eu faço.

Mas neste momento é o mais antigo deles, certo?

Sou! O que eu tenho é milhões de amigos lá fora, tenho muito conhecimento. O Porto conheço como os dedos da minha mão. Em Vila do Conde, sou lá um senhor grande. Vou lá e apoiam-me em tudo: dão-me de comer, dão-me de dormir, dão-me tudo! [risos]

O que acha que vai acontecer aqui com a olaria do Redondo? Vai continuar, vai terminar...?

Até que viva, vai para a frente. Morrendo, acabou.

Não há gente nova a aprender?

Não há! Lá está, a Câmara é que tem a culpa! A Câmara, se fosse ali como a de São Pedro do Corval... ali, a Câmara apoia os oleiros. Ali, é tudo apoiado pelo presidente. E fazem lá grandes feiras, grandes coisas. Há lá muitos oleiros e é tudo apoiado pela Câmara.

Mas qual é a melhor olaria?

São Pedro do Corval, mas quem lhes foi ensinar foi o Redondo. O Redondo foi quem ensinou, porque eles não faziam nada disto. Cá está, com o apoio da Câmara, começou subindo, subindo, subindo... Tem lá muita gente. A gente chegou a ser quase duzentos! Só nesta rua havia uns três.

Há quanto tempo?

Há mais de 80 anos, quando eu era criança. E era tudo cozido a lenha, não havia eletricidade. Aqui no Redondo, morre. Morre porque não tem apoio da Câmara. Se tivesse... Mas a Câmara não puxa. Olha, vê lá, temos umas três propriedades, podemos ir buscar o barro. Não pagamos nenhum tostão, temos só obrigação de tapar as covas. O dono da propriedade não pode pôr a gente na rua, eu posso ir cavar o barro onde eu quiser. Está uma "herda" feita para os oleiros do Redondo. Enquanto houver um oleiro do Redondo, pode ir cavar.

Mas alguém vai lá agora?

Ali aquele do Poço Velho, vai lá. E o Prudêncio também vai. Eu não. Começou a haver barro de Barcelona, venha para cá barro de Barcelona!

De Barcelona?! Vem de longe!

Eu compro o dobro do que ali está, às paletes. Este é de lá.

Como é que arranjou esse contacto?

Cá está, São Pedro do Corval. Eu compro em São Pedro do Corval, que vem de Barcelona e eles vêm-me cá pôr à porta. É bom. Vai-se gastando todos os dias. Está tudo a gastar de Barcelona. Se disserem o contrário, é mentira! [risos] É barato, o barro é barato. É um belo barro.

Já deu formação a outros oleiros?

A princípio dei, dei muita. Mas deixei de dar porque eles não me pagavam. Vem aqui muita gente: «Mestre João, não mete p’ra cá o meu filho?» Meto! Eu nunca digo que não. «E quanto é que lhe dá a ele?» [risos] Eu levei vinte anos à porrada para aprender. O meu pai não me dava nenhum tostão. Hoje neste ofício pensam que chegam ali e aprendem logo. Não aprendem, levam muitos anos! E querem logo ganhar! Como é que posso pagar a uma pessoa? Tenho que lhe ensinar e ainda tenho que lhe pagar! Então isso é o quê?! Nem ao meu filho eu fazia isso. Este ofício há de morrer pobre, há de ser toda a vida pobre. Este ofício... hoje já há umas máquinas para fazer louça. Mas está muito atrasado. Não passamos da mesma cepa. Quer dizer, não há um “puxamento”. É o que eu digo a muita pessoa.

Quais foram os melhores anos da sua vida de oleiro?

Para mim, os melhores anos... Até aos vinte anos, andei descalço. Tinha aí 22, 23 anos e o meu pai já me dava o dinheiro que ganhava. Até essa altura não me dava um tostão, tinha que dar o dinheiro todo para a comida. E os mestres não davam dinheiro à gente, só depois é que comecei a ganhar.

Mas houve uma altura em que vendia bem, não?

Nessa altura a loiça não chegava. Eram alguidares, eram as panelas, eram os cântaros, eram as tigelas grandes, para a ceifa, vendia-se tudo! Agora, juntar fortuna com isto, não juntam. Ainda trabalhei na casa do pai do Pirraça, há muitos anos. Eu, quando não me agradava, marchava de casa dos patrões. Olha, uma vez marchei de casa do meu mestre e o meu mestre foi fazer queixas ao meu pai. O meu pai apanhou-me lá em casa e levei uma sova! «Vá, a caminho da oficina!» Eu era vadio, era! Ainda hoje sou! [risos] Não fazia caso das conversas dele.

Porque é que a sua louça é diferente dos outros?

Porque eu estou a trabalhar antigo, não estou a trabalhar moderno. Agora é tudo muito brilhante, muito carregado, com muita cor. Em São Pedro do Corval já é muito industrial, muito carregado. Eu gosto e não gosto. Não gosto porque a pintura é muito carregada em tintas. Eu é que tenho dito a toda a gente: eu uso o antigo. Eles é pastor de um lado, pastor do outro... Eu não gosto de bonecos.

E de outros oleiros do país, de qual gosta mais?

Olha, no Casino Estoril tivemos um encontro de oleiros e o Zé Franco, de Mafra, dizia-me assim: «Oleiro de um cabrão!» Ele disse assim: «Quem ganha o primeiro prémio sou eu!» Ele não sabia fazer louça e fez um santo assim deste tamanho, bonito. E eu fiz uma jarra e enfeitei-a. Quando fomos lá para ver do prémio, pouca sorte. O José Franco ao pé de mim dizia: «Quem ganha o primeiro prémio sou eu.» Quando disseram: «Primeiro prémio, senhor Mértola», ele disse: «Filho de um cabrão!» [risos] Chamou-me todos os nomes. «Não te apoquentes, eu dou-te o prémio.» O trabalho do José Franco era bonito, ele só fazia santos, não fazia outra coisa. Mas ele era muito vaidoso, muito vaidoso. O Estado deu-lhe às carradas de dinheiro, por isso é que ele tinha uma grande vivenda.

Conheceu a Rosa Ramalho?

Conheço bem a Júlia, é minha amiga, tive muito conhecimento com ela. Ela ensinou-me a fazer os bonecos. Ela faz umas cabras mais mal feitas... e o vidro é sempre aquele amarelo. Aquilo é do melhor que há. «Então que vinho bebemos?» «Tem que ser do bom!» Todos os dias bebíamos [no intervalo das feiras]. Ela fazia muitas feiras comigo. Se não vender tudo, ninguém a pode suster! [risos] Cheguei-lhe a vender louça para ela pintar.

Assina as suas peças?

As minhas peças estão todas assinadas! Levante aí: “João [Mértola] do Redondo”. Antigamente ninguém assinava. Depois começaram a vir os estrangeiros e começaram a assinar. Antigamente não assinavam louça nenhuma. Agora não se vende uma peça de louça sem estar assinada. Eles põem na frente, eu ponho por trás! [risos] A minha louça serve para tudo: para ir ao forno, para fazer salada, serve para tudo.

Porque é que lhe chamam o Pintassilgo?

Porque sou levado da breca! [risos] Eu era gaiato e adorava pássaros. Tinha muitos ninhos! E o pássaro que eu mais gostava era o pintassilgo. Ainda hoje os meus desenhos é tudo pássaros.

Fotografias de Bruno Oliveira e Maria Manuela Restivo