ADÃO DE CASTRO ALMEIDA

Construtor de máscaras, Lazarim, Lamego

Natural de Lazarim, Adão de Castro Almeida é já uma figura conhecida, por ser atualmente um dos mais experientes construtores das máscaras de madeira que representam o Carnaval tradicional desta freguesia.

Fomos encontrá-lo, já a horas tardias, numa pequena oficina anexa a sua casa, acompanhado do seu aprendiz Daniel Silva, em fevereiro de 2018. O Carnaval aproximava-se e a azáfama era grande, já que todas as horas vagas são empregues na construção das máscaras de madeira que serão usadas na terça-feira gorda, na praça principal da freguesia de Lazarim. Adão, contudo, concedeu-nos parte do seu tempo para conversamos sobre as razões que o levaram a envolver-se nos festejos do Entrudo, mas também sobre as origens do Carnaval de Lazarim e dos mascarados, bem como sobre as mudanças radicais que este tem vindo a sofrer nos últimos anos.

Para começar, pedíamos-lhe que se apresentasse. É cá de Lazarim?

Nasci cá, fui criado cá. Conheço tudo que é daqui, sei como nasceu isto.

Em que ano nasceu?

Eu nasci em 1962. É um ano bonito. [risos]

Em que trabalha?

Sou funcionário público, trabalho para a Câmara de Lamego.

Desde sempre? Ou já teve outros trabalhos?

Desde sempre. Trabalho lá faz em Agosto 40 anos de serviço na função pública.

Como é que começou a construir máscaras?

Eu a trabalhar nisto começou simples e fácil. Quando era miúdo – mais novo aqui que o meu colega Daniel – eu gostava de jogar ao Carnaval, de estar aí na rua. Não era este Entrudo que há agora, era um Entrudo diferente que era nosso, só nosso. Não vinha cá ninguém de fora, éramos nós a brincar uns com os outros. E o que é que acontecia? Eu não conseguia ir a Lamego, tinha que ir a pé. E dinheiro também havia pouco, antigamente ninguém tinha carro, era tudo a pé. E o que fazíamos aqui? Por exemplo, pegávamos numa renda, que eu roubava à minha mãe – e até aquelas meias que havia de as mulheres vestirem – a gente pegava nela e fazia-lhe uns buracos para ir para a rua brincar. Lá aparecia uma máscara de madeira, de longe a longe, mas eu até nunca apreciei muito aquilo. Um dia – nós juntávamo-nos sempre quatro ou cinco caretos, pegávamos em portas dos fornos e em tachos velhos para fazer barulho pela rua fora, era a nossa coboiada – viemo-nos equipar e chega lá o Leonel a quem o tio, o Sr. Afonso, lhe tinha emprestado uma máscara. Até tinha o lábio pintado. E eu pus-me a olhar para a máscara e disse: “Oh Leonel, quem te deu?”. “O meu tio. Não me deu, emprestou-ma”. E eu virei-me para ele e disse: “De hoje a oito (isto foi no domingo) tenho uma máscara igual”. E assim foi. Fui para minha casa e comecei.

Que idade é que tinha?

Tinha eu os meus 16, 17 anos.

E que máscara fez?

Nem sei que máscara era aquela, era muito mal feita. Queixo muito comprido, nariz muito grande, olhos que não tinha jeito! No ano a seguir, a segunda que fiz, também mal feita, fiz tal e qual a cara do Álvaro Cunhal. Toda a malta que vinha para a rua dizia “Olha o Álvaro Cunhal!”. Eu nem imaginava. E depois pus-me a olhar. De facto o nariz, e tal, era parecido. Essa peça até ma roubaram. No mercado Ferreira Borges, no Porto. Eu estava lá a fazer o mercado – que eu trabalhava muito com o Centro de Emprego – e roubaram-ma.

O que é que aconteceu à primeira máscara que construiu?

Toda a gente gostou dela. Ela andou lá por casa até que se partiu – caiu da varanda – e a minha mãe depois queimou-a. Tive pena mas foi um descuido meu deixá-la cair.

E a partir daí, construía máscaras todos os anos?

Sim, a partir dali fazia sempre uma peça ou duas. Eu para vir para a rua tinha que ser com um trabalho meu.

Então fazia as máscaras e também saía com elas.

Sim, sempre.

E agora já não sai?

Agora já não. Eu saí de burro: tal e qual igual a um jumento, tal e qual! Fiz as quatro patinhas, com duas muletas; fiz uns cascos, preguei no fundo das muletas; a minha esposa fez-me a farda, tal e qual como a de um burro; até me fez o instrumento do burro, que ainda me valeu dinheiro, nessa altura. Se vocês vissem um burro a andar na rua, era conforme eu andava, tal e qual! Bati o record. No ano a seguir fiz o porco, e também saí tal e qual conforme um porquinho. No outro ano a seguir fiz o canguru – levei o meu filho na barriga, fiz uma farda onde tinha aqui o saco para o levar. Eu naquela altura gostava disto. Gostava de ir para a rua e mostrar-me. Era difícil ir para a rua e não ganhar. Eu ganhava sempre!

Então já na altura havia um concurso?

Quando eu comecei neste ritmo das máscaras, já. Apareceu com o presidente da Junta. Ele começou a dar valor e a apoiar-nos; começou a dar prémios e nós começámos a fazer os trabalhos.

Lembra-se do primeiro ano em que houve concurso?

De cabeça não. Mas para aí há 36 anos… 37 anos. Por aí assim.

Fez a sua primeira máscara com cerca de 16 anos, ou seja, por volta 1978. Antes dessa altura já havia a tradição de saírem com máscaras de madeira?

Saíam.

Era o Sr. Afonso que fazia?

Sim. Mas também o tio Francisco da Costa, que já morreu há muitos anos. O filho lá saía muitas vezes. Eles lá faziam uma máscara para um neto, para um afilhado… Mas era raro. Os familiares pediam e eles faziam. Mas não era… não era esta competição.

Quando diz “saíam”, era apenas passear na rua a usar as máscaras?

Não havia mais nada. Naquela altura não havia este marketing que há agora, naquela altura éramos nós a correr de casa em casa para bebermos um copito. Não era para desfilarmos pelo povo a mostrar as máscaras. Quando era pequenino, quem é que podia vir de fora, se havia caminho para aqui mas era em terra? Não vinha cá ninguém de fora. Era para nós brincarmos. E nós rapazes queimávamos sempre a comadre. As raparigas lá faziam de longe a longe… lá queimavam de longe a longe o compadre, quando arranjavam dinheiro.

O que é a comadre?

É um boneco que vai rebentar aí na terça-feira, acontece todos os anos. A comadre é uma mulher, em papel. Papel com bombas dentro! Depois pega-se-lhe o fogo, ela anda de roda… depois anda às cambalhotas, manda o foguete ao ar e depois rebenta.

Então também já havia nessa altura o compadre e a comadre!

Tudo, tudo o que há agora já havia na altura. Só que agora é a Junta que paga (a Junta ou quem organiza o Carnaval). Naquela altura, não. Nós, os caretos, nós, a juventude, é que dizíamos: "vamos fazer a comadre". Íamos ter com o Sr. Bernardo, a Lalim, a pé: “Sr. Bernardo, quanto é que nos leva?”. "Dai-me… 1500 escudos." Ainda me lembra. A última comadre que eu ainda paguei custou 1500 escudos.

E quando se deu esta mudança do Carnaval de antes para o de agora?

Foi quando fomos descobertos, quando nos começaram a descobrir. Quando começámos a divulgar o nosso Entrudo. A Câmara, o turismo, e por aí fora, começou-nos a ajudar. E a INATEL, que nos apoiou no início. Essa apoiou-nos muito para nós sermos conhecidos ao ritmo que agora está. É como diz um amigo meu de Ovar: “Nós quando começámos era uma brincadeira, agora estamos onde estamos”. E nós aqui é parecido. Começámos do nada e estamos a chegar a este ponto. Começámos de uma brincadeira escondida, mas agora estamos a divulgar isto pelo mundo fora.

Mas vocês dirigiram-se à INATEL?

Não, nada. A Junta é que começou a divulgar o nosso festival, a nossa brincadeira. Começaram a vir pessoas ver, começaram a vir pessoas importantes, e começaram a gostar e a divulgar. Que é o caso de agora, de vocês estarem a fazer-me estas perguntas e eu a explicar-vos, isto nasce daí. Antes não, antes éramos só nós. O nosso primeiro livro – editado pelo Museu Grão Vasco de Viseu – onde já estava um pouco do que é a nossa terra, foi a INATEL. Na altura era também um bom presidente da Junta que a malta tinha aí, que tinha um pouco de luz do que era isto, e começou a lançar-nos.

Mas quando é que começou a aparecer tanta gente no Carnaval?

Há cerca de 20 anos…. Assim que nós começámos a divulgar a nossa festa. Assim que a INATEL e companhia começou a entrar aqui, com a ajuda da Junta, a partir daí…

E foi crescendo aos pouquinhos?

Sim… Todos os anos há mais ou menos gente, depende. Depende do ritmo da publicidade, do que a malta faz, do que as autoridades querem gastar, dos eventos que vai haver.

Quantos artesãos são atualmente a fazer máscaras?

Nove ou dez.

Os trajes que acompanham as máscaras, quem os faz?

Depende. É sempre feito cá. Por exemplo, aquele careto que vai sair, é ele que vai fazer o traje. Vai fazer um traje de canas, de folhelho, ou de folhas ou paus. Nós aqui usamos a nossa matéria-prima, de cá. Nós não compramos quase nada de fora para fazer um fato. Temos por exemplo os palheiros, os fatos de saca. Quando se compram batatas ou cenouras guardamos os sacos e com isso fazemos fardas. Vamos aproveitando essas migalhas.

Mas há, por exemplo, senhoras da aldeia especializadas em fazer trajes?

Há, há algumas. Mas geralmente o careto não manda fazer a farda, ele faz. Há aqui um careto que todos os anos chega até ao meio-dia para acabar a farda para vir com ela para a rua.

E as máscaras que vai fazendo, como escolhe o que vai representar?

É à sorte. As pessoas podem pensar “ele está a fazer uma ideia…” Não. Eu neste preciso momento trabalho ao ritmo do que é o meu Entrudo aqui: a mulher e o diabo. Estas são as peças fundamentais do nosso Entrudo. Era a “picança” que havia desde que eu me lembro em pequeno: a mulher a picar o homem e o homem a picar a mulher. Pronto, dizer mal uns dos outros! Dizer os defeitos que têm… era essa a nossa guerra.

Quantas máscaras faz em cada ano?

13, 14, 15, 16... Depende.

Faz durante o ano todo?

Não. Outubro, Novembro, Dezembro, Janeiro… Trabalho depois do Carnaval, Março, Abril, Maio. Chega Maio e paro, que já não dá para trabalhar nisto.

Por causa da madeira?

Sim. Isto tem que ser trabalhado em verde. Mesmo agora ela racha muito! Se fosse no verão rachava quase tudo. Elas daqui a um mês estão curadas, estão secas. Já não abrem mais.

As máscaras são feitas em que madeira?

Amieiro. Nestas máscaras você transpira e esta madeira absorve a transpiração. E é uma madeira que não tem cheiro, põe-se na cara e cheira a água. Também é a madeira que se usa para fazer os tamancos serranos, não há madeira melhor do que esta. Eu já fiz de castanho: não se pode usar. De pinho, pior, que ninguém as põe na cara. Já as fiz de nogueira, são pesadíssimas, e o cheiro também é insuportável. Ah, e já fiz boas máscaras de lódão . Essas são boas mas nós cortámos os últimos lódãos.

Como vai buscar estes troncos?

Peço aos vizinhos. Quando tenho eu, corto os meus, ou cortamos à beira do rio. Escolho, corto aquele pau ou a árvore toda. A árvore toda dá-me por exemplo para 5, 6, 7, 8 máscaras. Esta última fomo-la buscar para aí há um mês.

E como faz para vender as máscaras?

As pessoas vêm cá ter ou contactam-me. Não faço publicidade.

Fica com alguma para si?

Ultimamente vendo tudo.

Que instrumentos usa?

Começo com a motosserra para cortar o tronco. Depois pego na enxó e aí vai! Para os acabamentos, uso um x-acto (até costumava usar a minha navalha).

Nunca pinta as máscaras?

Não pinto. Tira-lhe a minha mão. A tinta tapa o nosso trabalho. A única coisa que pode levar é uma mão de cuprinol, se o proprietário quiser. Ou um verniz transparente. Algo que não tape nada. A navalha tem que se ver nela. Se lhe tirarmos aquilo que a navalha tem, acabou. E as pessoas dizem: isto foi feito com máquina.

Tem sido durante muito tempo – e ainda é – um representante das máscaras de Lazarim, tendo inclusivamente participado numa feira de artesanato no Japão. Como é que conseguia conjugar as feiras com o seu trabalho?

Conseguia porque na altura o turismo e o Centro de Emprego e a Câmara trabalhavam em conjunto, e a Câmara apoiava. A Câmara enviava-me logo a mim: “Tu tens que ir, estás dispensado”. Era o artesão mais rebaldeiro! Levava trabalhos do Sr. Afonso, do Costinha, e de outros para vender na feira. E depois chegava à feira, e por aí eu via o que eram as mãos. Eu tinha lá cinco máscaras do Sr. Afonso e vendia-as todas. Eu tinha 5 minhas e vendia uma ou duas! As do meu colega Costinha já não vendia. Porquê? Porque o ritmo de trabalho era outro, o comprador chegava lá e as outras pareciam-lhe mecanizadas, mais perfeitas. Eles gostavam, mas fugiam à peça. Via-me à rasca para vender os trabalhos dele. 

Em relação ao Carnaval tradicional, quais são as diferenças principais entre o Carnaval de Lazarim e o de Trás-os-Montes?

Há algumas diferenças, cada um tem o seu Carnaval. Por exemplo, no Carnaval ali de Vinhais e das aldeias vizinhas, ali da zona de Bragança, é a queima de um Careto, é mais os cavalheiros a chocalharem as raparigas, é diferente. Nós aqui é uma crítica da mulher e do homem. Lá é um careto normal. Mesmo os bonecos que queimam lá, é o careto, um mono feito em giesta ou em palha. É diferente. Nós aqui não, nós vamos queimar o símbolo da mulher e o símbolo do homem, vamos dizer mal da mulher e mal do homem – embora o careto brinque na mesma, conforme brincam eles. E mesmo as próprias máscaras, as nossas são diferentes das deles. A nossa é uma caricatura mais perfeita que as deles. Eu dou-me bem com a maior parte dos artesãos, somos grandes amigos. E eu vejo que os trabalhos deles são completamente diferentes das nossas. São pintadas. Eu tenho um amigo de Miranda que me diz: “A tinta é que me dá o dinheiro”. Mas eu não gosto disso.

Acha que, no que diz respeito às festas das máscaras, uma tradição de uma aldeia não pode ter influenciado outra? O Carnaval de Lazarim não pode ter sido influenciado pelo Carnaval de Podence? Porque todas retomaram o Carnaval com força depois da revolução de abril.

Pois, porque antes aqui não se podia. Houve muita prisão por o careto vir para a rua. Antes do 25 de abril, careto que viesse para a rua era para a porrada. E tinha um problema: era para a porrada e esse careto podia ir preso. Como esta festa é uma festa pagã, a igreja não permitia. Depois do 25 de abril, de lá para cá, toda a malta fazia o Carnaval.

E antes?

Antes não sei! [risos]

O Carnaval de Lazarim está agora muito associado às máscaras de madeira. Mas através da conversa que aqui tivemos consigo percebemos que nem sempre foi assim. De que forma está envolvido na sedimentação desta imagem da máscara de madeira? Foi consigo que começou?

Não, não foi comigo. Eu desde que comecei a fazer foi sempre este tipo. Com esta dimensão, com cornos, etc.

E antes de si?

Antes de mim havia o Sr. Afonso, que fazia máscaras parecidas. Lá está, cada artesão tem o seu trabalho. Se você for aos livros estão lá as máscaras. Nós competíamos um com o outro.

E o diabo, já havia antes de vocês?

Havia, muito antes, sempre houve o diabo! Isto vem do antigo. Isso é garantido! Se você perguntar ao homem que sabe mais aqui do Carnaval – o Sr. Amândio [de Castro Lourenço], – ele vai-lhe dizer que a peça fundamental é o diabo! A peça original é o diabo e a senhorinha. Os bonecos vêm muito de trás, conforme as máscaras. A primeira máscara que eu vi na minha infância foi o diabo do Sr. Afonso, mais nada! E apareceu aí um velho de um senhor que já não sei quem era, acho que era o Sr. Bernarda. Era a cara de um velhote com um chapéu. E foram essas as primeiras máscaras que eu vi.

Essas máscaras perderam-se todas?

Sim. Quando isto foi lançado, as minhas primeiras máscaras – tal como as do Sr. Afonso – ninguém mas comprava aqui. Não havia museu, não havia nada. As primeiras máscaras não as vendia aqui, mas fora daqui. Não havia nada aqui. O Sr. Afonso também, acabou por vender a uns historiadores que apareceram aqui. Agora temos o museu. Mas também há uma coisa: eu posso ceder para lá uma peça, posso sim senhor! Mas também quero que o museu me apoie. Não estou a falar só por mim, mas também pelo grupo de artesãos que há. Agora, não vão os artesãos apoiar o CIMI [Centro Interpretativo da Máscara Ibérica] sem terem nenhum apoio deles. Há dez anos atrás não havia CIMI nenhum e as minhas máscaras já eram feitas, já eram comerciadas. E ninguém me apoiava! Eu na Junta que ajuda tinha? Oferecia-me um prémio: uma garrafa de champanhe. É verdade! O primeiro prémio que recebi aqui foi uma garrafa de anis! E estava todo contente com a garrafinha na mão! Eles pensam que isto dá dinheiro. Isto não dá dinheiro! Isto não pode ser explorado.

Considera que segue uma tradição na construção de máscaras?

Exato. Mas também fiz os bichos. Por exemplo, numa máscara destas coloquei uma cobra, um sardão… Já fiz a caricatura do burro, do canguru… Já fiz os veados com vários chifres. A competição era minha e do Sr. Afonso, nós tínhamos uma rivalidade. Eu fazia um diabo com bicho, ele fazia um diabo com bicho; eu fazia um burro, o Sr. Afonso aparecia com um burro. É verdade!... [risos] Eu fazia um benfiquista, o Sr. Afonso aparece com um portista. E andávamos sempre escondidos! Mas parece que os nossos pensamentos se conjugavam. Como, não sei! Ele também fazia muito bem as senhorinhas, eu nisso não sou muito bom.

Em alguns textos que lemos verificámos que antigamente os mascarados no Carnaval podiam ser um pouco agressivos…

Nós, os caretos (eu não!)... mas havia aí uns caretos que se vingavam de uma rivalidade durante o ano. Batiam à minha porta para me pedir um copo, para me bater!

Lembra-se de algumas histórias que possa partilhar connosco?

Ui, tantas! Ainda lembro, quando era pequenito, de os caretos prenderem os guardas. Os guardas vieram prender os caretos – o regedor chamou cá a guarda – e prenderam dois caretos. Juntou-se um grupo de caretos, desarmaram os guardas, prenderam-nos, e soltaram os outros. Eu fugi, era pequenito, não vi a ação toda, mas lembro-me bem dessa história. Depois vieram os tropas, os GNR – isso foi na casa do padre, onde se lê o testamento – vieram dois, três GNR, tinham armas. Foram chamados pelo regedor que havia aí. Depois houve a revolução! Os caretos juntaram-se, apareceram mascarados, o guarda chegou, eles desarmaram o guarda – eram muitos –, prenderam-no, e soltaram os caretos. Depois foram a tribunal, foram responder à guarda, lá se defenderam.

E histórias entre homens e mulheres?

Isso era por exemplo o seu pai zangar-se comigo. Porque eu disse que vossemecê se portou mal nisto, ou andava com aquele e queria outro…

Nos dias a seguir ao testamento?

Não, durante. Antes o testamento era lido nos três pontos da localidade, Padrão, Vila e Valverde. Numa ocasião na vila, nas escadas, estava o testamenteiro a ler – as raparigas nesse ano nem tinham nada – e o tio Joaquim ia para bater ao testamenteiro, com uma sachola. Nós, os caretos, é que não deixámos lá chegar o homem, quem levou ainda foi ele. Nós, caretos, protegíamos o nosso leitor!

Pois, pelo que lemos percebemos que algumas quadras são um bocado fortes…

Ah, e você ainda não viu nada! Agora está a ser mais porco, a nível da linguagem. Fala-se muito carvalho para cá, puta para lá…

E as raparigas não ficam chateadas?

É do dia, não fica ninguém. Acho que não fica ninguém. Não vejo ninguém a reagir… Ainda no ano passado houve aí umas críticas que não gostei, uns palavreados que eu não gostei. Não tinha nada a ver comigo, mas eu não gostei, acho que está mal. Mas ninguém se zangou.

Não há ninguém a controlar as quadras que os grupos escrevem?

Não, se não os jovens já não as faziam. Ainda houve uma altura em que a Junta tentou controlar, mas começou-se a deixar de fazer. Tivemos que pedir quase por favor para fazerem. Até houve anos que foram feitos já por nós adultos. Ou eles fazem à vontade deles, ou eles não fazem.

Então são os adolescentes que decidem juntar-se sozinhos?

Sozinhos. Por exemplo, é um grupo de rapazes que lhes dá na telha – mais ou menos até aos 25 anos – que se juntam. Vão à Junta: “Quanto é que dais para a bebida para fazermos o testamento?". “Dou-vos 50, 60 ou 70 euros". Eles pegam no dinheirinho, vão aí para uma casa velha, compram cerveja, levam isto e aquilo, e estão toda a noite a fazer o testamento. No dia do Carnaval há um rapaz que o vai ler e acabou.

E vocês não sabem quem são os jovens que estão envolvidos nisso este ano?

Não, ninguém sabe!

Está ali um rapaz com um ar comprometido! [risos]

Eles podem andar quatro ou cinco rapazes a fazer isto, mas é segredo.

E continuam a ser só os adolescentes da aldeia? É que, quanto aos caretos, qualquer um se pode vestir agora, certo?

O testamento são os rapazes e as raparigas da aldeia, mesmo que estejam a viver fora, em Lisboa, por exemplo. Os caretos, podem ser vocês! Podem fardar-se, pôr uma máscara e ir para a rua.

Não pode acontecer serem vários grupos a fazer testamentos?

Não. É um dos rapazes e uma das raparigas. Nós não sabemos, mas eles sabem entre eles. E o presidente da Junta também sabe, porque eles foram lá pedir dinheiro. Sabe quem está a organizar, mas não sabe quem está envolvido. Se eles soubessem que era eu que estava à frente do testamento, era complicado. Depois vinham prestar contas. Assim não: foram os rapazes que fizeram. Não fui eu, mas os rapazes. Podemos até ser só três! Mas são os rapazes.

E isso já havia no seu tempo de criança?

Já havia. Ainda me lembro quando o Sr. Neves estava a ler o testamento: chamou as raparigas porcas: “Sois umas porquinhas! Para arranjardes dinheiro para queimardes o compadre andastes a roubar o milho aos vossos pais! A roubardes os feijões que havíeis de comer”. Nessa altura!

Agora é muito diferente?

É muito diferente, agora é mais brincalhão, é mais diversão. O careto mete-se com o povo, diverte-se com o povo. É diferente. Antigamente não… era difícil chegarem-se ao pé de mim. Quem se aproximasse de mim estava a levar com o sarrafo. A canalhada nova também nos atacava com isto e aquilo, com torrões, mandava-nos com eles… E eu cheguei a ter dois a três caretos atrás de mim para me cascarem! Batiam-nos com os cajados, com os paus, não era brincadeira! Se nós não nos metêssemos com eles – eles iam a passar e nós afastávamo-nos – estava tudo ok. Se nós provocássemos, eles davam-nos mesmo!

E vocês não sabiam quem eles eram?

Não. Houve uma vez ali no Largo do Padrão, havia uma taberna, e só por um senhor querer tirar-lhe a máscara, levou duas facadas!

Facadas?!

Sim, picou-o! Não era brincadeira!

Porque é que deixou de ficar assim agressivo para se tornar mais calmo?

Tem a ver com a dimensão que isto tomou. Naquela altura era nosso, não vinha cá ninguém, éramos só nós! E a guerra era nossa. Não tínhamos cá nem pessoal de Lamego, nem de Lalim… era nosso!

Como é que encara todas estas mudanças?

Agora nós representamos para os outros, não é para nós.

E o que acha disso?

Gosto.

Como é que são recebidas as pessoas de fora que vêm para o Carnaval?

Nós, aqui o povo, neste momento, quer é ver pessoal de fora. Antigamente, quando começou a vir o pessoal, as pessoas ficavam meio esquisitas, não estavam à vontade. Agora não. Agora tem mais cafés, mais comércio, isto e aquilo… é diferente. Neste momento já há mais artesãos com interesse em ganhar dinheiro.

E isso é bem visto?

Sim. Antigamente quando éramos nós, era difícil vendermos uma máscara… Eu tive máscaras três e quatro anos. Agora não.

Na sua opinião estas mudanças são positivas?

Sim.

E acha que a população da aldeia também vê como positivo?

Sim. Embora haja sempre aquele que está contra porque não lhe interessa… Há sempre um ou outro.

Acha que este Carnaval ainda apresenta alguma função comunitária, de unir as pessoas?

Este Carnaval tem uma coisa: pessoal que não vinha cá durante o ano, agora vem. Antes não vinha. Vem ver a família e o Carnaval, que é uma coisa bonita, da terra deles.

Para terminar, gostaríamos que nos dissesse qual é a parte que mais aprecia em todo o Carnaval.

É a terça-feira. Gosto de ver as máscaras na rua, quer as minhas quer as outras, gosto de ver os caretos alegres… a brincar, a fazer asneiras. Gosto de ver a fazer asneiras! Para mim é a parte melhor.